sexta-feira, novembro 21, 2008

O HOMEM PÚBLICO N. 1

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

De: Ana Cristina Cesar

Dia a dia

Está tudo certo
tudo no seu devido lugar
o trabalho ocupa-me as oito horas
(diárias esperadas)
durmo outras oito
no resto do tempo divido-me entre
amigos bêbados
a tevê
e o tédio

me entedia não minha vida
de oito mais oito mais oito
horas diárias divididas

mas o trabalho sempre incompleto
os amigos sempre bêbados
e as noites mal dormidas

quinta-feira, novembro 06, 2008

Cruzado de direita

Karin Mamma Andersson

Seu Luis passou por Luisinha e fingiu que não a conhecia. Estava andando bem diretamente em sua direção quando, numa cruzada de olhares, fez cara de quem lembrou que esqueceu coisa muito importante do lado oposto do mundo e fez uma curva de 90 graus para longe do olhar. Luisinha ficou parada com um meio sorriso amarelo escuro grampeado nos lábios. Os dentes esconderam-se lentamente por trás dos lábios, num movimento de câmera lenta mal realizada. Os olhos de Luisinha dispararam a verificar se os passantes notaram ou não tudo aquilo, mas não conseguiu chegar a qualquer conclusão. Luisinha resolveu-se também seguir caminho fazendo curva em ângulo reto, caminhando em sentido oposto ao que tomou Seu Luis. E decidiu-se que assim seria permanentemente. Os dois a 180 graus de uma distância muda. Fim.

A Velha a Fiar



De: Humberto Mauro

quarta-feira, novembro 05, 2008

O quadro


Na casa de minha avó
Havia um quadro
Pendurado
No fim do corredor
Ela se sentava sempre
Em frente ao quadro
Em uma cadeira
De madeira
Depois de muitos anos
Minha avó não olhava
Mais para o quadro
Mas o quadro
Olhava por ela
E com ambos fiz um pacto
Em silêncio
Quando ela deixou de sentar-se na cadeira
Quando a família inteira corria para se desfazer de suas coisas
Quando me foi dada a vez de recolher algo para mim
Algum pedaço da existência dela
Coloquei seu quadro no fim do meu corredor
A me lembrar da cadeira
De madeira
Onde sentada
Descansava a minha avó

Bárbara Nunes