domingo, fevereiro 21, 2010

MY DEAR

Chove a cântaros . Daqui de dentro penso sem parar nos gatos pingados. Mãos e pés frios sob controle. Notícias imprecisas, fiquei sabendo. É de propósito? Medo de dar bandeira? Ouça muito Roberto: quase chamei você mas olhei para mim mesmo etc. Já tirei as letras que você me pediu.


O dia foi laminha. Célia disse: o que importa é a carreira, não a vida. Contradição difícil. A vida parece laminha e a carreira é um narciso em flor. O que escrevi em fevereiro é verdade mas vem junto dram de desocupado. Agora fiquei ocupadíssima, ao sabor dos humores, natureza chique, disposição ambígua (signo de gêmeos).


Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim, você vendo tv e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)?


Penso no Thomas. Passou o frio dos primeiros dias. Depois, desgosto: dele, do pau dele, da política dele, do violão dele. Mas não tenho mexido no assunto. Entrei de férias. Tenho medo que o balanço acabe. O Thomas de hoje é muito mais velho do que eu. Não liga mais, estuda, milita e amor a Martinica de longos peitos e dentes perfilados, tanta perfeição.


Atraída pelo português de camiseta que atendeu no Departamento Financiero. Era jacaré e tinha bigode de pontas. Ralhei com tesão que me deu uma dor puxada.


Só hoje durante a vista de Cris é que me dei conta qie batizei a cachorra com o nome dela. Tive discreto repuxo de embaraço quando gritei com Cris que me enlameava o tapete. Cris fugiu mas Cris não percebu (julgando-se tavez homenageada?). Gil por sua vez leu como sempre no smeus lábios e eclatou de riso típico umidificante.


O mesmo Gil jura que são de Shakespeare os versos “trepar é humano, chupar é divino” e desvia o olhar do centro da mesa, depois de diagnosticar silenciosamente minha paranóia.


Deu discução hoje com a Mary. Segundo ela Altmann é cruel com a classe média e isso é imperdoável. Me senti acusada e balbuciei uma bela briga. Ao chegar em casa pesou a mão imperdoável na barriga. Mary tem sempre razão.


Gil diz que ela não se abre comigo porque sabe que minha inveja é maior que meu amor. Ao telefone me conta da carreira e cacacá. Por Gil porém sei dos desastres do casamento. Comigo ela não fala.


Ontem fizemos um programa, os três. Nessas ocasiões o ciúme fica saliente, rebola e diz gracinhas que nem eu mesma posso adiantar. Ninguém sabe, mas ele tem levezas de um fetinho. É maternal, põe fraldas, enquanto o trio desanca seus caprichos. Resulta um show de uva, brilhante microfone do ciúme! Há sempre uma sombra em meu sorriso (Roberto). A melancólica sou eu, insisto, embora você desaprove sempre, sempre. Aproveito para pedir outra opnião.


Gil diz que sou leoa-marinha e eu exijo segredo absoluto (está ficando convencido): historinhas ruminadas na calçada são afago para o coração. Quem é que pode saber? Eu sim sei fazer calçada o dia todo, e bem. Do contrário...


Não fui totalmente sincera.


Recebi outro cartão postal de Londres. Agora diz apenas: “What are men for?”. Sem data.


Não consigo dizer não. Você consegue?


E a somatização, melhorou?


Insisto no sumário que você abandonou ao deus-dará: 1. bondade que humilha; 2. necessidade versus prazer; 3. filhinho; 4. prioridades; 5. what are men for.


Sonho da noite passada: consultório escuro em obras; homens trabalhando; cama e tijolos; decidi esperar no banheiro, onde havia um patinete, anuncios de pudim, um sutiã preto e outros trastes. De quem seria o sutiã? Ele dormiu aqui? Já nos vimos antes, eu saindo e você entrando? Deitados lado a lado, o braço dele me tocando. Chega pra lá (sussurro). Ela deu minha blusa de seda para a empregada. Sem ele não fico em casa. Há três dias que pareço morar onde estou (ecos de Ângela). Aquele lugar de desatenção neurológica me deixa louca. Saímos para o corredor. Você vai ter um filho, ouviu?


Passei a tarde toda na gráfica. O coronel implicou outra vez com as minhas idéias mirabolantes da programação. Mas isso é que é bom. Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto pra caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca.


Epígrafe masculina do livro (há outra, feminina, mais contida), do Joaquim: “É a crônica de uma tara gentil, encontro lírico nas veredas escapistas de Paquetá, imaginética, verbalização e exposição de fantasias eróticas. Contém denúncia da vocação genital dos legumes, a inteligência das mocinhas em flor, a liberdade dos jogos na cama, a simpatia pelos tarados o gosto pela vida e a suma poética de Carlos Galhardo”.


Meu percoço está melhor, obrigada.


Quanto à história das mães, acenando umas para as outras com lençóis brancos, enquanto a filha afinal não presta assim tanta atenção, só posso dizer que corei um pouco de ser tudo verdade. F. Pensao não percebe, mas como sempre mente muito. Mente muito! Só eu sei. Vende a alma ao diabo negociando a inteligência alerta pela juventude eterna. Você diria? No pacto é pura Rita Hayworth, com N. Na cenografia, encaixilhando espelhos. Brincam de casinha na hora vaga. Na festa que deram Gil alto discursava que casamento é a solução, mestre da saúde. Ironias do destino. Seguiu-se é claro ressaca sonsa e ciúmes rápidos de Rita.


Não estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?


Fica difícil fazer literatura tendo o Gil como leitor. Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências diretas.


Na mesa do almoço Gil quis saber a verdadeira identidade de um Jean-Luc, e diante de todos fez clima de conluio, julgando adivinhar tudo. Na saída me fez jurar sobre o perfil dos sepulcros santos – Gil está sempre jurando ou me fazendo jurar. E depois você ainda diz que eu não respondo.


Ainda aguardando.


Beijo.


P.S. 1 – Não quero que T. Leia nossa correspondência, por favor. Tenho paixão mas também tenho pudor!


P.S. 2 – Quando reli a carta descobri alguns erros ortográficos, inclusive a falta do h no verbo chorar. Não corrigi para não perder um certo ar perfeito – repara a paginação gelomatic, agora que sou artista plástica.


Ana Cristina César