Logo me dei conta, depois que a minha mulher fez a descoberta, de que todos deveriam conhecer aqueles meus defeitos corporais e certamente não notavam outra coisa em mim.
- Está vendo o meu nariz? – perguntei de repente, naquele mesmo dia, a um amigo que se aproximara para me falar não sei qual negócio que talvez me interessasse.
- Não, por quê? – respondeu ele.
E eu, sorrindo com nervosismo:
- Cai para a direita, não está vendo?
E impus-lhe uma atenta e detalhada inspeção, como se aquele defeito no meu nariz fosse um irreparável distúrbio que houvesse atingido a máquina do universo.
Meu amigo me olhou primeiramente um pouco aturdido. Depois, certamente suspeitando que eu tivesse puxado subitamente e fora de propósito o assunto do meu nariz para demonstrar que não dava importância ao negócio que ele estava me expondo, deu de ombros e me deixou plantado ali. Eu o segurei por um braço e disse:
- Não me leve a mal, - falei – estou disposto a tratar do assunto. Mas, neste momento, você vai ter de me desculpar.
- Ainda está pensando em seu nariz?
- Nunca percebi que ele caía para a direita. Foi minha mulher que me fez notar isso, hoje de manhã.
- Ah, é mesmo? – perguntou-me então o amigo; e seus olhos riram com uma incredulidade que era também um deboche.
Fiquei olhando para ele como olhara para minha mulher de manhã, ou seja, com um misto de abatimento, irritação e espanto. Quer dizer que ele também já havia percebido isso há muito tempo. E quem sabe quantos outros mais! Eu não sabia de nada e, não sabendo, pensava ser um Moscarda de nariz reto, quando na verdade eu era para todo mundo uma Moscada de nariz torto. E quem sabe quantas vezes me acontecera de falar, sem nenhuma suspeita, do nariz defeituoso de fulano ou sicrano, fazendo não sei quantas vezes os outros rirem de mim, pensando:
“Mas vejam só esse pobre coitado, que aponta defeitos nos narizes alheios”.
É verdade que eu poderia consolar-me com a idéia de que, afinal de contas, o meu caso era óbvio e banal, mais uma prova de um fato extremamente notório, isto é, que todos notamos facilmente os defeitos dos outros e não percebemos os nossos. Mas o primeiro germe do mal já começara a lançar raízes no meu espírito, e eu não pude me consolar com esta reflexão.
Em vez disso fixou-se no meu pensamento a idéia de que eu não era para os outros aquilo que até agora, dentro de mim, havia imaginado que fosse.
Naquele momento, pensei apenas no corpo. Mas, como meu amigo continuava postado na minha frente com aquele ar de incredulidade galhofeira, por vingança perguntei-lhe se, por sua vez, ele sabia que tinha uma pequena cova no queixo, que o dividia em duas partes desiguais: uma mais cheia aqui, outra mais rasa acolá.
- Eu? Que nada! – exclamou o amigo. – Sei que tenho uma covinha, mas não como você diz.
- Então vamos ali ao barbeiro, e você vai ver – propus logo.
Quando meu amigo, entrando na barbearia, permaneceu espantado aquele defeito e reconheceu que era verdade, não quis demonstrar irritação; disse que, no fim das contas, aquilo era uma ninharia.
Sim, sem dúvida, uma ninharia. No entanto eu vi, seguindo-o a uma distância prudente, que ele parou uma primeira vez numa vitrine de uma loja, e depois uma segunda vez diante de outra; e ainda uma terceira, e por mais tempo ainda no espelho de um balcão, para observar o queixo. Tenho certeza de que, assim que entrou em casa, ele correu ao armário para fazer mais à vontade, naquele outro espelho, o novo reconhecimento de si com aquele defeito. E não tenho a mínima dúvida de que, para vingar-se por sua vez ou para levar adiante uma brincadeira que lhe pareceu merecer uma ampla difusão na cidade, depois de ter perguntado a algum amigo (assim como eu fizera com ele) se por acaso já havia notado aquele seu defeito no queixo, deve ter descoberto algum outro defeito na cara ou na boca desse seu amigo, o que, por sua vez...Mas claro, claro! Eu poderia jurar que, por vários dias, nesta nobre cidade de Richieri, vi (se não foi pura imaginação de minha parte) um número considerável de conterrâneos passando de uma vitrine de uma loja a outra e parando em frente de cada uma delas para observar em seus rostos uma maçã do rosto, um rabo de olho, um lobo de orelha, uma ponta de nariz. E ainda uma semana mais tarde um sujeito se aproximou de mim com um ar arrasado para me perguntar se era verdade que, a cada vez que falava, ele contraía inadvertidamente a pálpebra do olho esquerdo.
- Sim, meu caro – disse-lhe a queima-roupa – E quanto a mim, está vendo? Meu nariz cai para a direita. ,as isso eu sei por mim mesmo, não é preciso que você venha me dizer. E as sobrancelhas? Dois acentos circunflexos! As orelhas aqui, olhe, uma mais saliente que a outra. E aqui, as mãos: chatas, hein? E a junta deste mindinho? E as pernas? Aqui, esta aqui, lhe parece igual a esta outra? Não, hein? Mas eu sei por mim mesmo, não é preciso que você venha me dizer. E passe bem.
Plantei-o ali e fui embora. Poucos passos depois, ouvi chamar.
- Ei, psiu!
Calmo, calmo, com o dedo, ele me chamou para perto e então perguntou:
- Desculpe a curiosidade, mas, depois de você, sua mãe teve outros filhos?
- Não, nem antes nem depois – respondi-lhe. – Sou filho único. Por quê?
- Porque – m,e disse ele – se sua mãe tivesse engravidado uma segunda vez, certamente teria tido um outro menino.
- Ah, é? E como é que você sabe?
- É que as mulheres do povo dizem que, quando os cabelos de uma criança terminam num rabichinho como este que você tem aí na nuca, a criança seguinte será do sexo masculino.
Levei a mão à nuca e, com um risinho frio de desprezo, perguntei-lhe:
- Ah, eu tenho um... com é mesmo que você disse?
E ele:
- Um rabichinho, meu caro. É como o chamam em Richieri.
- Oh, mas isso não é nada! – exclamei. – Posso mandar cortá-lo.
Negou primeiro com o dedo e então disse:
- Fica sempre o sinal, meu caro, mesmo que você mande raspá-lo.
E dessa vez foi ele quem me deixou plantado.
In: Um, nenhum e cem mil
De Luigi Pirandello
Cosac & Naify - Pág. 23