domingo, dezembro 28, 2008

homem agachado






Bárbara Nunes
(marcador de CD sobre fórmica + photoshop)

domingo, dezembro 21, 2008

O Velho



Bárbara Nunes
(Photoshop com mesa para desenho)

quarta-feira, dezembro 17, 2008

Dulce tortura

Polvo de oro en tus manos fue mi melancolía;
Sobre tus manos largas desparramé mi vida;
Mis dulzuras quedaron a tus manos prendidas;
Ahora soy un ánfora de perfumes vacía.
Cuánta dulce tortura quietamente sufrida,
Cuando, picada el alma de tristeza sombría,
Sabedora de engaños, me pasaba los días
¡Besando las dos manos que me ajaban la vida!

De Alfonsina Storni
In: Antologia poética - Ed. Losada - Pg. 49

segunda-feira, dezembro 15, 2008

A GUERRA

Quem visita destroços
ou o ódio corriqueiro
das cidades, sabe
que nunca houve paz.

De: Waldir Pedrosa Amorim

segunda-feira, dezembro 08, 2008

A ARQUEÓLOGA

a menina
brincava consigo
de arqueologia às avessas

escondia
pelos cantinhos do parque
pequenas dicas
de sua personalidade

depois sentava-se
à sombra de uma árvore
grande
a imaginar
uma reconstrução de si mesma
a partir daqueles fragmentos

em pouco tempo
a menina
já ria e ria
tanto pela figura confusa
que concebia
quanto pelo fato
de esconder juntas
verdades e mentiras

e nessa arquelogia
da menina
às avessas
às vezes se passava
a vida
em uma tarde inteira

Bárbara Nunes - 2008
Figura de Gustavo Aimar

sexta-feira, novembro 21, 2008

O HOMEM PÚBLICO N. 1

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

De: Ana Cristina Cesar

Dia a dia

Está tudo certo
tudo no seu devido lugar
o trabalho ocupa-me as oito horas
(diárias esperadas)
durmo outras oito
no resto do tempo divido-me entre
amigos bêbados
a tevê
e o tédio

me entedia não minha vida
de oito mais oito mais oito
horas diárias divididas

mas o trabalho sempre incompleto
os amigos sempre bêbados
e as noites mal dormidas

quinta-feira, novembro 06, 2008

Cruzado de direita

Karin Mamma Andersson

Seu Luis passou por Luisinha e fingiu que não a conhecia. Estava andando bem diretamente em sua direção quando, numa cruzada de olhares, fez cara de quem lembrou que esqueceu coisa muito importante do lado oposto do mundo e fez uma curva de 90 graus para longe do olhar. Luisinha ficou parada com um meio sorriso amarelo escuro grampeado nos lábios. Os dentes esconderam-se lentamente por trás dos lábios, num movimento de câmera lenta mal realizada. Os olhos de Luisinha dispararam a verificar se os passantes notaram ou não tudo aquilo, mas não conseguiu chegar a qualquer conclusão. Luisinha resolveu-se também seguir caminho fazendo curva em ângulo reto, caminhando em sentido oposto ao que tomou Seu Luis. E decidiu-se que assim seria permanentemente. Os dois a 180 graus de uma distância muda. Fim.

A Velha a Fiar



De: Humberto Mauro

quarta-feira, novembro 05, 2008

O quadro


Na casa de minha avó
Havia um quadro
Pendurado
No fim do corredor
Ela se sentava sempre
Em frente ao quadro
Em uma cadeira
De madeira
Depois de muitos anos
Minha avó não olhava
Mais para o quadro
Mas o quadro
Olhava por ela
E com ambos fiz um pacto
Em silêncio
Quando ela deixou de sentar-se na cadeira
Quando a família inteira corria para se desfazer de suas coisas
Quando me foi dada a vez de recolher algo para mim
Algum pedaço da existência dela
Coloquei seu quadro no fim do meu corredor
A me lembrar da cadeira
De madeira
Onde sentada
Descansava a minha avó

Bárbara Nunes

sexta-feira, agosto 29, 2008

A MÁQUINA DO TEMPO

A Máquina do Tempo
de Clara
congelou-a
naquele momento

que existia
Clara
e o tempo
e mais nada
ou
existia todo o resto
menos Clara
e o tempo

(e a máquina)

Clara me encarava
intocável
indestrutível
Clara me olhava
com aquela cara
de que vai permanecer assim
a minha vida inteira

Sentada à Máquina do Tempo
em vertiginosa viagem
rumo ao futuro
Clara me via a vida
em um segundo

E passaram-se anos
antes que eu notasse
que ela piscava os olhos
de vez em quando

Clara
a estátua
rumo a um futuro só dela
Clara
viajando
para daqui a mil anos
em um instante

Clara
Como que presa ao dia
Em que sentou na máquina
Ela viajando mais rápida
que a luz
e a mim encarando
congelada

Parece um paradoxo isso
mas sabe de uma coisa?
É a cara dela.

Bárbara Nunes (2008)

sexta-feira, agosto 22, 2008

poeminha sem querer

a pele dela
tinha aquele cheiro
de azeite
extravirgemde olivia
das menininhas que
ainda hoje
têm vinte anos de idade

Bárbara Nunes (2008)

quinta-feira, julho 31, 2008

depois da noite

Entra a madrugada
Madrugada a dentro
Entra a noite pela janela
Escurece o ar
Que ouço batendo
Na janela
A madrugada adentro
Engole o mundo
A madrugada é o
Útero pulsante
Da vida
Posso respirar seu pequenos
Barulhos
O cheiro da noite
Arrepia meus pelos
Pentelhos cabelos
Molhados de suor
Da noite
Desejo ouvir uma chuva
Contra a janela
Gritando rugindo
Mas a madrugada de hoje
É seca é calma
e inerte

Bárbara Nunes (2008)

quinta-feira, julho 10, 2008

EPIGRAMA N.o 9

O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.

Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? sobre esse vento?
sobre essa folha que se vai?

Cecília Meireles
in: FLOR RE POEMAS - Ed. Nova Franteira - Pg. 68

quarta-feira, junho 25, 2008

A MÁQUINA DO TEMPO

Cap. 11

- Eu já lhes falei do enjôo e da confusão que vêm com uma viagem no tempo. E desta vez eu não estava sentado adequadamente, mas meio de lado. Por um tempo indefinido fiquei agarrado na máquina enquanto ela balançava e vibrava, sem se preocupar com minhas condições, e quando consegui olhar nos mostruários fiquei satisfeito de novo em saber aonde tinha chegado. Um mostruário registra os dias, outro os milhares de dias, outro os milhões de dias, e outro os milhares de milhões. Agora, em vez de reverter as alavancas, eu as empurrei de modo que fui para a frente com elas, e quando pude olhar os ponteiros vi que o do milhares de anos ia tão rápido quanto o de segundos de um relógio – em direção ao futuro.

- À medida que me deslocava, houve uma mudança peculiar na maneira das coisas. O cinza piscante foi escurecendo – ainda que eu estivesse viajando a uma velocidade prodigiosa; a sucessão de dias e noites, que usualmente indicava um andar mais lento, retornou e foi ficando mais e mais cadenciada. Isso me intrigou muito no começo. As alternâncias entre dia e noite ficaram mais e mais lentas, e o mesmo acontecia com a passagem do sol através do céu, até que ambos os deslocamentos pareceram se estender por séculos. Ao final um crepúsculo constante só foi interrompido aqui e ali por um cometa que passava. A faixa de luz que havia indicado a trajetória do sol tinha desaparecido há muito: pois o sol parou de se pôr – simplesmente subia e descia a oeste, e ficava cada vez maior e mais vermelho. Não havia qualquer vestígio da lua. O brilho ao redor das estrelas, diminuindo mais e mais, havia dado lugar a pontos de luz que se arrastavam. Por fim, pouco antes de eu parar, o sol, vermelho e muito grande, ficou imóvel no horizonte, como uma enorme cúpula que emitia calor constante, e de vez em quando sofria uma extinção momentânea. Por um tempo ele brilhou forte de novo, mas logo voltou ao calor obstinado. percebi por essa gradual diminuição da velocidade de sua trajetória que a varredura dos mares cessara. A Terra havia vindo descansar com uma face voltada ao sol, como em nosso tempo a lua volta sua face à Terra. Muito cuidadosamente, pois me lembrava de ter virado de ponta-cabeça da outra vez, comecei a reverter meu movimento. Mais e mais devagar os ponteiros foram ficando até que o dos milhares pareceu imóvel e o dos dias não era mais que uma névoa em seu mostruário. Mas de vagar ainda até que os turvos contornos de uma praia desabitada se mostraram.

- Parei muito suavemente e me sentei na Máquina do tempo para olhar ao redor. O céu já não era azul. A nordeste ele estava preto retinto, e em meio à escuridão brilhavam estáveis as pálidas estrelas brancas. No alto o céu estava vermelho forte e sem estrelas, e a sudeste estava mais para um escarlate diáfano no qual, cortado pelo horizonte, estava a grande cúpula do sol, vermelho e imóvel. As pedras ao meu redor estavam coloridas por um vermelho tosco, e todo o indício de vida que pude ver a princípio foi a vegetação intensamente verde que cobria qualquer ponto a sudoeste. Era o mesmo verde suntuoso que se vê no musgo de floresta ou no líquen das cavernas: plantas que crescem sob a luz de um perpétuo crepúsculo.

- A máquina estava numa praia inclinada. O mar se estendia a sudoeste e dava num horizonte bastante luminoso em contraste com o céu pálido. Não havia arrebentação ou ondas, pois não havia nem um sopro de vento. Apenas uma longa vaga surgia e sumia como um suspiro, mostrando que o eterno mar ainda vivia e se movia. E ao longo das margens onde o mar às vezes quebrava havia uma concentração de sal – um sal rosa, sob aquele lívido céu. Havia uma sensação de opressão sobre minha cabeça, e eu reparei que estava respirando muito rapidamente. A sensação me lembrou a que eu tive na minha única experiência de alpinismo, e por isso julguei que o ar ali era mais rarefeito.

- Muito acima da praia ouvi um grito áspero, e vi algo como uma enorme borboleta branca voando para o alto e para baixo e, fazendo círculos, desapareceu atrás de alguns montes. O som de sua voz era tão sinistro que senti um arrepio e me sentei mais firmemente na máquina. Olhando ao meu redor de novo, vi que, bem perto de mim, o que eu havia tomado por uma rocha avermelhada estava se movendo lentamente em minha direção. Então vi que aquilo era uma criatura monstruosa semelhante a um caranguejo. Vocês podem imaginar um caranguejo do tamanho de uma mesa, com as patas se movendo lenta e incertamente, as grandes garras balançando, as longas antenas mexendo como chicotes, e seus antolhos olhando para vocês pelos dois lados de uma fronte que parecia de metal? Suas costas eram enrugadas e ornamentadas com protuberâncias esquisitas e pústulas verdes aqui e ali. Eu podia ver os diversos palpos de sua complexa boba tremulando enquanto se movia.

- Enquanto eu via essa aparição sombria lentamente vir em minha direção, senti uma cócega em minha bochecha como se uma mosca tivesse pousado ali. Tentei tirá-la com a mão, mas ela logo voltou, e quase imediatamente veio outra na minha orelha. Bati nesta e peguei uma espécie de fio. Ele logo escapou da minha mão. Com medo e novo virei-me e vi que havia pego a antena de outro caranguejo-monstro que estava logo atrás de mim. Seus olhos terríveis balançavam em seus pendúnculos, sua boca parecia estar com o apetite animado, e suas garras, sujas de limo, estavam descendo em minha direção. Imediatamente pus a mão na alavanca e programei ficar a um Mês de distancia dos monstros. Mas continuei na mesma praia e os vi tão logo parei. Dezenas deles pareciam se mover aqui e ali, na luz sombria, entre as lâminas folheadas de verde intenso.

- Não posso comunicar a sensação de abominável desolação que pairava sobre o mundo. O céu vermelho a leste, preto a nordeste, o salgado Mar Morto, a praia rochosa em que rastejavam esses monstros sujos, o verde que parecia venenoso dos liquens, o ar rarefeito que fazia doer os pulmões: tudo contribuía para um efeito assustador. Movi-me cem anos, e havia o mesmo sol vermelho – um pouco maior, um pouco mais parado -, o mesmo mar estático, o mesmo ar frio, o mesmo grupo de crustáceos rastejando no veludo verde e nas rochas vermelhas. E no céu a oeste vi uma linha curva e pálida como a de uma grande lua nova.

- Assim fui viajando, parando de vez em quando, em grandes saltos de mil anos ou mais, atraído pelo mistério do destino terrestre, observando com estranho fascínio o sol ficar maior e mais constante no céu a oeste, e a vida da antiga Terra se esgotando. Ao final de mais de 30 milhões de anos daqui, a grande cúpula vermelha e quente do sol havia encoberto quase um décimo do escurecido céu. Então parei mais uma vez, pois a multidão de caranguejos havia desaparecido, e a praia vermelha, exceto pelo verde pálido de seus liquens, parecia estar sem vida. E agora estava salpicada de branco. Uma fria amargura me saltou. Raros flocos brancos caíam de vez em quando. A nordeste, a luminosidade da neve ficava abaixo do escuro do céu e eu podia ver uma corrente de colinas róseo-esbranquiçadas. Havia contornos de gelo ao longo das margens do mar, com banquisas de gelo mais para dentro; mas a maior área daquele oceano, toda vermelho-sangue por causa do eterno sol, ainda não estava congelada.

- Olhei ao redor para ver se ainda restava algum sinal de vida animal. Uma certa apreensão ainda me mantinha preso ao assento da máquina. Mas não vi nada se movendo, na terra, no céu ou no mar. Só o limbo verde nas rochas testemunhava que a vida não estava extinta. Um pequeno banco de areia havia aparecido no mar e a água ocupava menos a praia. Imaginei ter visto algum objeto preto balançando sobre esse banco, mas ele ficou imóvel enquanto eu o olhava, e julguei que o meu olho havia se enganado e que o objeto era simplesmente uma pedra. As estrelas do céu brilhavam intensamente e me pareceu que piscavam muito pouco.

- De repente eu percebi que o contorno oeste do sol havia mudado; que uma concavidade, uma baía, havia aparecido na sua curvatura. Vi-a crescer mais. Por um minuto, talvez, fitei espantado este negrume que avançava sobre o dia, e então compreendi que um eclipse estava começando. Ou a lua de Mercúrio estava passando frente ao sol. Naturalmente, pendei primeiro que fosse a lua, mas muita coisa me leva a acreditar que o que vi na realidade era um planeta passando perto da Terra.

- A escuridão aumento rapidamente; um vento frio começou a soprar refrescantes rajadas vidas do leste, e a chuva de flocos brancos aumentou em quantidade. Da beirada do mar meio um murmúrio e um sussurro. Afora esses sons sem vida, o mundo estava silencioso. Silencioso? Seria difícil descrever sua monotonia. Todos os sons humanos, o berro do carneiro, os gritos dos pássaros, o zunido dos insetos, os barulhos que compõe o pano de fundo de nossas vidas – tudo estava acabado. À medida que a escuridão se adensava, os flocos estava se tornando mais abundantes, dançando diante dos meus olhos; e o frio da atmosfera era mais intenso. Ao final, um a um, ligeiramente, um depois do outro, os picos brancos das colinas distantes ficaram pretos. A brisa tornou-se um vento lamentoso. Vi a sombra central do eclipse correndo em minha direção. Pouco depois apenas as pálidas estrelas permaneceram visíveis. Todo o resto estava em plena escuridão. O céu estava absolutamente preto.

- Um pavor dessa grande escuridão tomou conta de mim. O frio, que me atingia a espinha, e a dor que eu sentia para respirar me dominaram. Tremi e senti uma náusea fatal. Então, como um arco vermelho no céu, reapareceu um pouco do sol. Saí da máquina para poder me recuperar. Eu estava com tonturas e não me sentia capaz de fazer a viagem de volta. Enquanto estava lá, enjoado e confuso, vi de novo uma coisa se movendo no banco de areia – agora não havia dúvida de que ela se movia – sob a água vermelha do mar. Era redonda, talvez do tamanho de uma bola de futebol, ou, quem sabe, maior, e tentáculos nasciam debaixo dela; parecia preta em contraste com o agitado mar, e balançava a intervalos. Então senti que ia desmaiar. Mas o pavor de ficar deitado sob aquele remoto e terrível crepúsculo me sustentou enquanto subi de novo à máquina.


A MÁQUINA DO TEMPO
De H. G. Wells.
Editora: Nova Alexandria. 2001
Pgs 111 a 117

perfume


para Neila

nem bem me viu
acusou
a pia anda entupida
foi mais ou menos assim
que deu-me bom dia
falou assim assim
como se não houvesse
segundas intenções
e virou-se de costas
foi-se embora para o quarto

outro dia foi a mesma coisa
a pia entupida
um problema qualquer no correio
ela me pergunta simplesmente
se tenho sugestões
para sua vida
e me pergunta sobre o marido
é pura provocação
sorri malignamente toda vez
é marida é marida
ela sabe
ela sabe
e reprova de maldade
com a mesma maldade que
não me diz
bom dia
com a exata alegria
com que se esconde no quarto

a maldade
ela sabe
é como um perfume
bom bom
odeio perfume
mesmo os bom bons
mesmo os que gosto
odeio perfume
e ela sabe
e ela usa
a maldade e o perfume
ela usa
a cada dia que não me dá
os bons dias e
sai para o quarto

no quarto se tranca
ou se tranca mais ou menos
espera agachada
sentada no assoalho
ouvidos à porta
espera por mim
me escuta os movimentos

eu passeio a casa
abro a janela
sento no sofá
faço um café
sujo a pia

obviamente
leio o jornal
dou duas ou três voltas pela sala
e enfim
invado o quarto
invado
rasgando as roupas
quebrando tudo
então saio
batendo a porta

e furiosa
já descendo a escada
com o cigarro arrombado nos dentes
com a alma molhada de rancores
e prazeres
escuto-a caminhar pela sala
a me chamar

a pia anda entupida
a pia anda entupida

Bárbara Nunes (junho2008)

terça-feira, junho 24, 2008

O caqui

Havia um caqui
no meio da história
a moça
que lia
a história revoltou-se
Que fazia o caqui ali?
Bem no meio da história?
Numa história em que nada havia
onde pudessem pousar caquis?

A moça revoltou-se comigo
Questionava enfurecida
da presênça do caqui
que, aliás, aparecia
e desaparecia
igualmente sem aviso
Parecia-lhe
que sujava o quadro

Ora
eu respondi
que sentido deveria haver
em um caqui?
O caqui serve tanto como
fruta
quanto como
metáfora
ou
absurdo
Eu mesmo não sou muito
de caquis
mas este apareceu de repente
e eu sei reconhecer um caqui
quando vejo um

Poema -transcrição do post Caquis, pois não?, do blog Crõnycas Përvèrzas .

Bárbara Nunes (2008)

quarta-feira, junho 18, 2008

A noite minha

Ela me fez esperar o dia
o dia inteiro
Disse que hoje a noite
era minha
A noite
O dia
eu não tenho
O dia inteiro
espero
Deixando para depois
o dia
Adiando
a fantasia
Ela disse
que a noite
era minha
que à noite
era minha
A noite chega
num repente infinito
um minuto depois
do outro
escorrendo
pela porta
fechada
Cruz do relógio digital
a porta é o pedestal
onde me ajoelho
e peço à deus
paciência
e peço à deus
que na noite chegue
e peço à deus
que não chegue
a noite
Pois
a violência da Espera
também esconde certos prazeres
Os minutos
enfileiram-se um dois
cinco quatro três
e nada
a noite vem
e nada
a lua nasce
e nada dela
e a espera
insuportável
Espero à porta
eu e o relógio
que não bate as horas
seja porque
não passam
seja porque
é frio
O relógio digital
sem som
sem tic tac
das horas
Há horas
que espero
e nada
E ela?
A noite chega
e passa
e nada dela
e nada
Dela
o tempo não passa
passa lento
passa de repente
de repente já é
Dia
E nada dela
E nada
Dela
nunca mais
Nada dela
Nem o nome
Sei mais
Não sei
Mas... a espera
É ela
Nada mais

Bárbara Nunes (junho2008)

terça-feira, junho 10, 2008

Blue

Tenho meus dias
Acordo Infelizmente
A vida é um momento que dá e passa Espero
Passa
Lembro de todas as coisas
As coisas todas me fazem falta
Por aqui tudo é esse momento
Nada mais
Há um reflexo na parede
Serei
A chuva que bate na janela
Diz
Sobre hoje
O dia será dela
O dia será dela
Espera
O dia acaba em algum momento
Te espero
Não quero
Apago uns milímetros da fumaça
O peso da água me afoga
Destroça
A paisagem

Bárbara Nunes (2006)
Entre nós dois
Inverto
Inverso
Entre sons
Intenso
Expresso
Saudades
E abraços
Inacessíveis
Ausentes
Mesmo em
Sua presença
Pequena
Incerta
Inverte desejos
Precisos
Escusos
Salto entre
Paredes
Diversas
Expressas
Vagalhões em
Espaço
Descalço
Converso
Na falta de tua
Barriga
Precisa
Preguiça
Idéias contra a parede
Em rede
Em rede

Bárbara Nunes (2006)

Casa Vazia

andei prestando atenção
em mim e nos meus pensamentos
ultimamente
tenho pensado muito
eu mesma nem sei em que
que tantas coisas são essas que me passam pela cabeça
que me prendem os olhos no horizonte
bem distante, que só existe
na parede branca
do meu quarto
passo dias e mais dias
no meu quarto
encarando o horizonte
e pensando
não sei no que
às vezes me questiono
como se eu e eu fossem duas pessoas
- que é que você tanto encara?
e a resposta não sai
não sai nada
nem um sorriso de volta
não vem
nem uma lágrima
só aqueles olhos de quem não vê o que tem na frente
só os meus olhos me olham e não me respondem
mesmo o espelho não reflete minha alma
meu reflexo não me encara de volta
ele encara o vazio
e só

eu estou presa dentro dessa carapaça
corpo antigo e sem alma
é como se eu habitasse uma casa que já não é mais minha
às vezes é até difícil me imaginar
mais nova
aqui dentro
como eram os meus risos
como eu mastigava a comida
como eu conversava com o Alberto
e com o Zé, e com a Vitória
como era possível
eu não sei
é como lembrar de um antigo amor
um que já passou, que não faz mais sentido
e não conseguir mais se imaginar
vivendo tudo aquilo
eu não consigo mais imaginar
como era esse corpo em vida
esse corpo
que hoje é coisa desconhecida
não reconheço
nem o nariz
nem as mãos
nem as pernas
nem uma costela
nem esse olhar que nada encara

eu sinto que essa casa
contudo é habitada
por outra pessoa
há mais alguém aqui
sim, há
sinto sua presença
justamente nesse vazio
e
sinto que ela que sabe de mim
me observa
me avalia
tenho medo
com quem será que divido esse espaço?
quem é que
silenciosamente
ocupa
os espaços que desprezo?

tento me pegar desprevenida
tento saber pelo reflexo do espelho
que alma penada me habita
será apenas o vulto
a sombra
da minha vida antiga?
daqueles mesmos sorrisos
e conversas
e mastigares
que deixei para trás?
tenho medo de me encontrar
por aí
aquela que era eu
riria-se de mim
me mataria de vergonha
ao me encontrar
eu sei
eu me jogaria na cara
a minha covardia
o meu medo
o meu esconderijo
aqui
nessa casa vazia

Bárbara Nunes (2008)

quarta-feira, abril 02, 2008

quarta-feira, março 19, 2008

Natureza

É o céu uma abóbada aureolada
Rodeada de gases venenosos
Radiantes planetas luminosos
Gravidade na cósmica camada
Galáxia também hidrogenada
Como é lindo o espaço azul-turquesa
E o sol fulgurante tocha acesa
Flamejando sem pausa e sem escala
Quem de nós pensaria apagá-la
Só o santo doutor da natureza
De tais obras, o homem e a mulher
São antigos e ricos patrimônios
Geram corpos em forma de hormônios
Criam seres sem dúvida sequer
O homem após esse mister
Perpetua a espécie com certeza
A mulher carinhosa e indefesa
Dá à luz uma vida, novo brilho
Nove meses no ventre aloja o filho
Pelo santo poder sã natureza
O peixe é bastante diferente
Ninguém pode entender como é seu gênio
Reservas porções de oxigênio
Mutações para o meio ambiente
Tem mais cartilagem resistente
Habitando na orla ou profundeza
Devora outros peixes pra despesa
E tem época do acasalamento
revestido de escamas esse elemento
Com a força da santa natureza
O poroquê ou peixe-elétrico é um tipo genuíno
Habitante dos rios e águas pretas
Com ele possui certas plaquetas
Que o dotam de um mecanismo fino
Com tal cartilagem esse ladino
Faz contato com muita ligeireza
Quem tocá-lo padece de surpresa
Descarga mortífera absoluta
Sua auto voltagem eletrocuta
Com os fios da santa natureza
Tartaruga gostosa, feia e mansa
Habitante dos rios e oceanos
Chegar aos quatrocentos anos
Pra ela é rotina, é confiança
Guarda ovos na areia e nen se cansa
De por eles zelar como defesa
Nascido os filhotes com presteza
Nas águas revoltas já se jogam
Por instinto da raça não se afogam
E pelo santo poder da natureza
O canário é pássaro cantor
Diferente de garça e pelicano
Papagaio, arara e tucano
Todos eles com majestosa cor
O gavião é um tipo caçador
E columbiforme é a burguesa
O aquático flamingo é da represa
A águia rapace agigantada
Eis o mundo das aves a passarada
Quanto é grande, poderosa e bela a natureza
A gazela, o antílope e o impala
A zebra e o alce felizardo
Não habitam em comum com o leopardo
O leão e o tigre-de-bengala
O macaco faz tudo mas não fala
Por atraso da espécie, por franqueza
Tem o búfalo aspecto de grandeza
O boi manso e o puma tão valente
Cada um de uma espécie diferente
Tudo isso é obra da natureza
Acho também interessante
O réptil de aspecto esquisito
O pequeno tamanho do mosquito
A tromba prênsil do elefante
A saliva incolor do ruminante
A mosca nociva e indefesa
A cobra que ataca de surpresa
Aplicar o veneno é seu mister
De uma vez mata trinta se puder
Mas isso é coisa da natureza
No nordeste há quem diga que o corão
Possui certos poderes encantados
Através de fenômenos variados
Prevê a mudança de estação
De fato no auge do verão
Ele entoa seu cântico de tristeza
De repente um milagre, uma surpresa
Cai a chuva benéfica e divina
Quem lhe diz, quem lhe mostra, quem lhe ensina?
Só pode ser o autor da natureza
Quem é que não sabe que o morcego
Com o rato bastante se parece
Nas cavernas escuras sobe e desce
Sugar sangue dos outros é seu emprego
Às noites escuras tem apego
Asqueroso ele é tenho certeza
Tem na vista sintoma de fraqueza
Porém o seu ouvido é muito fino
E um sonar aparelho pequenino
Que lhe deu o autor da natureza
Admiro a formiga pequenina
Fidalga inimiga da lavoura
No trabalho aplicado professora
Um exemplo de pura disciplina
Através das antenas se combina
Nos celeiros alheios faz limpeza
Formigueiro é a sua fortaleza
Onde cada uma delas tem emprego
Uma entra outra sai não tem sossego
Isso é coisa da santa natureza
A aranha pequena, tão arguta
De finíssimos fios faz a teia
Nesse mundo almoça, janta e ceia
É ali que passeia, vive e luta
Labirinto intrincado ela executa
Seu trabalho é bordado em qualquer mesa
Quem pensar destruir-lhe a fortaleza
Perderá de uma vez toda a esperança
Sua rede é autêntica segurança
Operária das mãos da natureza
A planta firmada no junquilho
Begônia, tulipa, margarida
As pedras riquíssimas da jazida
Com a cor, o valor, a luz, o brilho
A prata e o ouro cor de milho
O brilhante, a opala e a turquesa
A pérola das jóias da princesa
É difícil, valiosíssima e até
Alguém pensa ser vidro mas não é
É um milagre da santa natureza
O inseto do sono tsé-tsé
As flores gentis com seus narcóticos
As ervas que dão antibióticos
A mudança constante da maré
A feiúra real do caboréno pavão é enorme a boniteza
Tem o lince visão e agudeza
E o cachorro finíssima audição
Vigilante mal pago do patrão
Isso é coisa da santa natureza?
A cigarra cantante dialoga
Através do seu canto intermitente
De inverno a verão canta contente
E a sua canção não sai da voga
Qualquer árvore é a sua sinagoga
Não procura comida pra despesa
Sua música sinônimo de tristeza
Patativa da seca é o seu nome
Se deixar de cantar morre de fome
Mas isso a gente sabe que é da natureza

Xangai

domingo, março 16, 2008

A lembrança não era mais do que uns cabelos embaralhados pelo vento.
Mesmo assim doía.
Não tinha muita vontade de começar.
Mas o dia correria pra frente
com ou sem ela.
E assim para sempre.
É assim que funciona.
Ainda bem.

Ao levantar-se sentiu um odor ocre.
Era ainda resquício do sonho.
Sentiu-se um cachorro ao levantar-se e dar de cara com sua maneira de espreguiçar. Sacudia. Abanava o rabo.
Pra comprovar a teoria latiu
AU!

Sacudir-se era extremamente necessário.
Lembrou dos relatórios.
Inventava relatórios para passar o dia mais rápido.
Fazia o relatório do que fazia.
Vivia um ritmo imposto por uma burocracia absurda
Que lhe tirava o controle
Era uma perda sado-masoquista.

Notou os cabelos que embaralhavam a escova de dentes
de frente para o espelho
ouviu um barulho forte vindo da janela. Pensou ser um grito.
Lembrou-se de ter jogado o vaso com flores mortas
pela janela no dia anterior.
Riu-se de si. Era esperta. Espantosamente esperta.
Esqueceu-se de tudo e pegou o dinheiro do metrô.

Saiu de casa pensando, com firmeza: hoje troco os lençóis da cama.

Lembrou de Clarisse.

A vida tem seus momentos.

Bárbara Nunes (2004)

sábado, março 15, 2008

O Agregado

Quem véve no luxo, somente gozando
Dinhêro, gastando sem mágua e sem dô,
Não sabe, nem pensa e também não conhece
O quanto padece quem mora a favô.

Meu Deus! Cumo é duro se uvi o lamento,
O grande trumento do triste agregado!
Osente das coisa mais boa da vida,
De rôpa rompida, sem cobre, coitado!

Os fio dizendo: - Papai, tou com fome!
E o pobre desse home a chorá como lôco,
Oiando a famia, tão magra e tão fraca,
Na véia barraca de páia de côco.

Promode armoçá, é perciso premêro
Corrê o dia intêro, sadio ou doente,
Só acha consôlo, na sorte tão crua,
Nos bêjo da sua muié paciente.

Acorda bem cedo e do frio agasaio
Sai para o trabaio, de foice ou de enxada;
Assim padecendo crué abandono
Na roça do dono da casa caiada.

Não crê nas premessa do rico opulento,
No seu sofrimento só pensa em Jesus,
Rogrando e pedindo pra tê piedade,
Levando a metade do pêso da cruz.

As suas criança, pra quem tudo farta,
Não brinca, não sarta, não tem alegria,
Enquanto pinota na casa caiada
Feliz meninada, rebusta e sadia.

Não vai à cidade, só véve loitando,
Limpando ou brocando, socado na mata.
Ninguém lhe conhece, nem sabe seu nome,
Se acanha com os home que bota gruvata.

Se às vêz ele fica parado, escutando
Arguém conversando, falando de guerra,
Cochicha uma reza, baixinho, em segredo,
Tremendo com medo dos grandes da terra.

Assim ele véve, do mundo esquecido,
Com fome e despido, a chorá cumo lôco,
Com sua famia tão magra e tão fraca,
Na véia barraca de páia de côco.


Patativa do Assaré

sexta-feira, janeiro 25, 2008

A Musa

acordei às 6 da manhã
Adília Lopes contorcia-se na cama
ao meu lado
os lençóis presos aos pés
ao cabelo
Adília Lopes resolveu que eu precisava mesmo
era de uma musa
e sabia a musa
eu precisava
de uma Clarisse
beijei-lhe a face
ela adormeceu instantaneamente
com os lençóis agarrados aos meus cabelos

*

acordei 3 quilos mais leve
Clarisse vestia o amarelo
dos lençóis de elástico
do quarto de hóspedes
Clarisse era livre
e sonhava ferozmente
que ainda seria livre
Clarisse tinha verdadeira
obsessão
por rasgar papéis cheios de letras
e queimar minhas cartas
Clarisse disse-me um dia
que nunca me amara
Clarisse delirava
achava que existia o tempo
(e que ela mesma
se utilizava desse tempo
para alguma coisa)
Clarisse desconfiava
estava totalmente obcecada
e certa

*

perguntei à Adília
se a musa dela
comia seus sutiãs
e queimava suas cartas
Adília respondeu
musas só mudam a agência
e o número da conta

*

não se sentido bem
minha musa engoliu
de uma só vez
o caderno com os telefones de todos os homeopatas
Clarisse acha imperfeitos
os telefones
e os homeopatas
(afirmou que a alopatia funciona bem
mais contra os males de um mundo sem idéias)

Bárbara Nunes (2003)

sábado, janeiro 05, 2008

Carta para a Musa

Soube que você desistiu, mais uma vez, de sua viagem. Estou escrevendo para te contar que também pra mim não tem sido fácil. Ontem mesmo, só de olhar meus papéis. Resolvi que ia desistir de tudo. Entrei para debaixo das cobertas – e fazia frio. Às vezes faz muito frio, até quando fecho as janelas. Acho que tem uma frestinha nalgum lugar por onde escorrega vento.

Pois é, Clarisse. O Mário não dizia alguma coisa dos urubus pintados de verde? Parece que vai cair o mundo aqui e botei uma música bem alta pra ver se não penso mais naquele dia. Sei que você se lembra daquele dia. A gente tomou um chope meio de lado uma pra outra. Com certeza você lembra. Foi a primeira vez que você ficou de lado pra mim. Eu já tinha até virado e ido embora. Algumas vezes. Mas foi sua primeira vez.

Antigamente, bem antes, você gostava de caminhar pela casa de pés pretos. Reclamava de tudo. Pegava meu calendário e saía marcando os dias. Depois me desamarrava os cachos, falava meia dúzia de bobagens e caía no sono, abraçada ao meu colo. Eu ficava te olhando. E você acordava rindo de tudo, pulava em cima do colchão... Troquei o lençol aqui sempre pensando nisso. Hoje é o azul. Lembra do azul? Deitei nele e me cobri com frio, agarrada aos mil travesseiros.
>e às pegadas de abdução, uma a uma presas no teto.

Bárbara Nunes, 2003

Yonqui

sentado en un dormitorio oscuro con 3 yonquis,
mujeres.
hay bolsas de papel marrón con la brasura
por todas partes. es la una y media de la tarde.
hablan de manicomios,
de hospitales,
están esperando una dosis

ninguna de ellas trabaja.
todo es subsidio y cupones de comida y
Centro Médico de Califórinia.

los hombres son objetos que sirven
para conseguir la dosis.

es la una y media de la tarde
fuera crecen plantas pequeñas
sus niños todavía están en la escuela.
ellas fuman cigarrillos
y aburridas dan sorbos de cerveza
tequila
que he comprado yo.
estoy sendado con ellas
y espero mi dosis:
soy un yonqui de la poesía.

A Ezra le arrastraron por las calles
en una jaula de madera.
Blake creía en Dios.
Villon fue un ladrón.
Lorca chupava pollas.
T. S. Elliot trabajaba de cajero en una ventanilla,
la mayoría de los poetas son cisnes,
son garzas.

estoy sentado con 3 yonquis
a la una y media de la tarde.

el humo es una meada ascendente.

espero.

la muerte es el Junbo de la nada.

una de las mujeres dice que le gusta
mi camisa amarilla.

creo en la violencia natural.

aquello era
parte de eso.

Chales Bukowski
Ps: Está em espanhol pq o livro que tenho está em espanhol.

NO MORE TEARS

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar horas a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não pode se fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar

Adília Lopes

O Jardim & a Janela

Quando nos separamos deixei tudo para trás. Os móveis, os CD´s, o dicionário. Saí sem nada. As panelas eram todas dele, a chaleira, a vassoura, a roupa de cama, a toalha que eu gostava de secar o rosto. Tudo dele. Eu não tinha chegado com nada e não levava nada. Nem as cartas, pois que também ele as tinha escrito. Deixei nossas fotografias, o shampoo caro, as poesias que eu tinha feito. E as poesias que ele não tinha feito pra mim, as deixei todas lá. Deixei os panos de chão, as discussões sobre grana, a conta de telefone, o número da faxineira. Nada disso levei comigo. Nossos presentes de ajuntamento também não me pertenciam. Pertenciam antes à casa, que também era de propriedade dele. Mesmo os cartões que minha irmã me mandou de viagem tinham sido enviadas a um endereço que não era o meu.

Não levei nada. Nem as saudades que jurei levar. Nem as felicidades que achei que poderia gozar. Mas saí de lá triunfante, carregando meu único troféu. Debaixo do braço levei, serelepe, o desentupidor de privada. Pois é, o desentupidor de privada! Aquele objeto enorme, horrível, inútil, era, agora, meu. Só meu. Todo meu. Completamente meu.

Mudei-me para um conjugado na Glória. O espaço total da casa era justo para a cama, um armário, uma geladeira pequena e o fogão de duas bocas. Eu mal cabia. Parecia uma casa planejada para um robô ou algum ser que não se movesse muito. Em frente à cama ficava o desentupidor. Antes de dormir, eu olhava pra ele. Acordava e era a primeira coisa que via. O desentupidor virou um monumento. Sabia-me só porque tinha o desentupidor. Sabia-me triste por causa dele, sabia-me inteira também por sua culpa. O desentupidor virou uma referência. Chegava em casa e a primeira coisa que fazia era verificar se ele estava mesmo no lugar onde o deixara. Era uma coordenada nas sombras, a caminho do banheiro. Minha cabeça podia estar a mil, mas entendia que o mundo ainda estava no lugar quando via, mesmo que de relance, sua sombra na parede.

Mas um dia acordei com as bochechas amassadas por cima dos olhos. Os pés para trás. As unhas quebradas. Olhei para o desentupidor e notei alguma coisa estranha. Girei, examinei, repreendi. Fiz algum bom esforço para não pensar naquilo. Cheguei do trabalho e achei o desentupidor ao lado da privada, caído assim, meio torto. No dia seguinte meus olhos já não abriram, minhas costas estavam contorcidas, minhas unhas davam voltas em direção à própria mão. O desentupidor de privada estava no mesmo lugar de sempre, e dali me encarava, como sempre. Mas alguma coisa havia de errado. Novamente saí, trabalhei, comi, bebi, conversei, me estressei e, quando cheguei em casa, dei com meu companheiro caído outra vez ao lado da privada.

Quando acordei de manhã o desentupidor não estava lá. Nem no banheiro. Nem na lata de lixo (quem sabe me irritei e não me lembro?). O desentupidor simplesmente tinha deixado minha casa. Estou louca, meu desentupidor fugiu de mim. Olhei pela janela. Não havia cometido suicídio. Respirei fundo. Um desentupidor não sai andando assim, sozinho, pelo meio da rua. E, se tivesse, com certeza sairia no jornal das oito. Liguei a televisão. Dois dias se passaram sem notícia. Três dias. Depois quatro. No jornal não saiu nada a respeito. Nem nos boatos da internet. Nada.

(E ainda tive que ouvir de minha mãe que não existem desentupidores grandes o bastante para servirem a privadas.)

Bárbara Nunes, 2003