Quando nos separamos deixei tudo para trás. Os móveis, os CD´s, o dicionário. Saí sem nada. As panelas eram todas dele, a chaleira, a vassoura, a roupa de cama, a toalha que eu gostava de secar o rosto. Tudo dele. Eu não tinha chegado com nada e não levava nada. Nem as cartas, pois que também ele as tinha escrito. Deixei nossas fotografias, o shampoo caro, as poesias que eu tinha feito. E as poesias que ele não tinha feito pra mim, as deixei todas lá. Deixei os panos de chão, as discussões sobre grana, a conta de telefone, o número da faxineira. Nada disso levei comigo. Nossos presentes de ajuntamento também não me pertenciam. Pertenciam antes à casa, que também era de propriedade dele. Mesmo os cartões que minha irmã me mandou de viagem tinham sido enviadas a um endereço que não era o meu.
Não levei nada. Nem as saudades que jurei levar. Nem as felicidades que achei que poderia gozar. Mas saí de lá triunfante, carregando meu único troféu. Debaixo do braço levei, serelepe, o desentupidor de privada. Pois é, o desentupidor de privada! Aquele objeto enorme, horrível, inútil, era, agora, meu. Só meu. Todo meu. Completamente meu.
Mudei-me para um conjugado na Glória. O espaço total da casa era justo para a cama, um armário, uma geladeira pequena e o fogão de duas bocas. Eu mal cabia. Parecia uma casa planejada para um robô ou algum ser que não se movesse muito. Em frente à cama ficava o desentupidor. Antes de dormir, eu olhava pra ele. Acordava e era a primeira coisa que via. O desentupidor virou um monumento. Sabia-me só porque tinha o desentupidor. Sabia-me triste por causa dele, sabia-me inteira também por sua culpa. O desentupidor virou uma referência. Chegava em casa e a primeira coisa que fazia era verificar se ele estava mesmo no lugar onde o deixara. Era uma coordenada nas sombras, a caminho do banheiro. Minha cabeça podia estar a mil, mas entendia que o mundo ainda estava no lugar quando via, mesmo que de relance, sua sombra na parede.
Mas um dia acordei com as bochechas amassadas por cima dos olhos. Os pés para trás. As unhas quebradas. Olhei para o desentupidor e notei alguma coisa estranha. Girei, examinei, repreendi. Fiz algum bom esforço para não pensar naquilo. Cheguei do trabalho e achei o desentupidor ao lado da privada, caído assim, meio torto. No dia seguinte meus olhos já não abriram, minhas costas estavam contorcidas, minhas unhas davam voltas em direção à própria mão. O desentupidor de privada estava no mesmo lugar de sempre, e dali me encarava, como sempre. Mas alguma coisa havia de errado. Novamente saí, trabalhei, comi, bebi, conversei, me estressei e, quando cheguei em casa, dei com meu companheiro caído outra vez ao lado da privada.
Quando acordei de manhã o desentupidor não estava lá. Nem no banheiro. Nem na lata de lixo (quem sabe me irritei e não me lembro?). O desentupidor simplesmente tinha deixado minha casa. Estou louca, meu desentupidor fugiu de mim. Olhei pela janela. Não havia cometido suicídio. Respirei fundo. Um desentupidor não sai andando assim, sozinho, pelo meio da rua. E, se tivesse, com certeza sairia no jornal das oito. Liguei a televisão. Dois dias se passaram sem notícia. Três dias. Depois quatro. No jornal não saiu nada a respeito. Nem nos boatos da internet. Nada.
(E ainda tive que ouvir de minha mãe que não existem desentupidores grandes o bastante para servirem a privadas.)
Bárbara Nunes, 2003
Um comentário:
Adoro este texto....
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