quarta-feira, dezembro 30, 2009

há naquela criança

uma maldade exacerbada
pelos cachos loiros
pelos olhos verdes
pela pele queimada de sol
pelo sorriso estampado no rosto de anjo de michelangelo ou alejadinho
que só daqui
de trás da penumbra fria do meu quarto encharcado de umidade
cigarro e noite
é possível ver

PARADOXALMENTE

espremia-se o próprio cérebro
como espremeria
os cravos
minhoquinhas gordas
cheias de idéias
saiam-lhe pelos ouvidos
atraindo peixes voadores
já bastante espertos
que observavam todo esse movimento

ao longe
em silêncio

quinta-feira, dezembro 24, 2009

LIVROS DE POESIA


não são bons
apoios para copos d'água no sofá da sala
a não ser que
sejam Antologias

quarta-feira, dezembro 23, 2009

O MARQUÊS DE CHAMILLY

(...)

ALGUMAS CARTAS de Marianna foram parar
a destinatários diferentes
por cansaço dos carteiros
e Marianna soube disso
ela andava pelos corredores do metro
a abordar senhores
desculpe não foi a si
que eu escrevi
comove-me tanto?
e os senhores apavorados
davam-lhe vinte e cinco escudos
a correr
e ela comprava mais selos
e ela comprava mais selos
não sei se é a si que estou a escrever
não me lembro das suas mãos bem
ontem no metro julguei reconhecê-lo
mas foi mais um terrível engano
mais tarde ou mais cedo todas as cartas
lhe serão devolvidas hermeticamente
fechadas
minha senhora o seu amante
não se encontrou nesta morada


KABALE UND LIEBE

Marianna suspeita que
não é por cansaço dos carteiros
nos C.T.T. há funcionários
incumbidos
de lhe abrir as cartas
com facas muito finas
e de as substituir por fakes
humilhantes para ela
e para o marquês
ô les insondables mystères
de la poste!
e Marianna vê esta frase
que escreveu
já subrepticiamente num postal
desfigurada
por dedos peritos na Mal
dade (como os do Dr. Mabuse)
oh lez inssondiable Mjzthère
de La Pozte &
nada é tão humilhante como um erro
de ortografia

Adília Lopes
in: Antologia, 7Letras

MULHER AO ESPELHO


HOJE QUE SEJA esta ou aquela,
pouco me importa,
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, ja fui morena,
Já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que vai me matando.
Que me levem, pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

Cecília Meireles
In: Flor de poemas

CENA


um homem
num escritório
(cinza gelo
espartanamente mobiliado
o homem)
observa pela
gelosia: um menino
vestido de escoteiro
no meio da rua
acenando
(mãos moles
sorriso de todos
os dentes
o menino)
para os carros
ônibus
caminhões


Ismar Tirelli Neto
In: synchronoscopio

pela janela do ônibus

a vida tem tanto movimento
que fica óbvia
a farsa

terça-feira, dezembro 22, 2009

A FÉ E AS MONTANHAS

No princípio a Fé removia montanhas só quando era absolutamente necessário, e por isso a paisagem permaneceu igual a si mesma durante milênios.

Porém quando a Fé começou a propagar-se e as pessoas começaram a achar divertida a idéia de mover montanhas, estas não faziam outra coisa senão mudar de lugar, e cada vez era mais difícil encontrá-las no lugar em que a gente as tinha deixado na noite passada: coisa que, se percebe, criava mais dificuldades do que as resolvia.

A boa gente preferiu então abandonar a Fé, e agora as montanhas geramente permanecem em seu lugar.

Quando numa estrada acontece um desmoronamento debaixo do qual morrem vários viajantes é porque alguém, muito longe ou por ali mesmo, teve uma ligeiríssima recaída de Fé.


Augusto Monterroso

segunda-feira, dezembro 21, 2009

aquele caderninho

que você me deu de presente


me tortura até hoje


Escura

Solitária

Sufocante

Vil




Ai...

Os prazeres de uma boa depressão...

PARA CASOS DE EMERGÊNCIA


meus algozes me ajudam tanto

que sempre tenho um ou dois

guardados na mesinha de cabeceira

domingo, dezembro 06, 2009

VOCÊ É a última vez
que eu faço isso







Ismar Tirelli Neto
synchronoscopio, pg 45.