quinta-feira, junho 17, 2004

terça-feira, junho 15, 2004

CAPÍTULO XXII

- Estávamos falando de coisas que nos interessam muitíssimo – disse ela. – Não seria bom continuarmos, e deixar Swift para outra ocasião? Não me sinto com disposição para Swift, e é pena ler alguém nesse estado de espírito, sobretudo Swift.

A Pretensão de douta especulação literária, como imaginara, restaurou a confiança de William em sua segurança pessoal, e ele pôs o livro de volta na estante, mantendo-se de costas para ela ao fazê-lo e aproveitando a oportunidade para concatenar seus pensamentos. Mas um segundo de introspecção tivera por alarmante resultado mostrar-lhe que sua própria mente, quando vista de fora para dentro, já não era um terreno familiar. Ou seja, o que sentira antes, conscientemente. Revelou-se a si mesmo como pessoa diversa da que gostaria de ser, viu-se ao léu num mar de possibilidades tulmutuosas e desconhecidas. Ficou a andar de um lado para o outro da sala, depois atirou-se impetuosamente na cadeira ao lado da ocupada por Katharine. Nunca antes sentira coisa alguma parecida com isso. Colocou-se inteiramente nas mãos dela. Abandonou toda e qualquer responsabilidade. E quase exclamou em voz alta:

“Você despertou todas essas odiosas e violentas emoções; agora tem que fazer o melhor que puder com elas.”

Contudo, sua presença junto dele surtiu um efeito calmante e tranqüilizador sobre sua agitação; ele se sentia apenas cônscio com ela, que ela o tiraria do beco-sem-saída, descobriria o que ele desejava e o obteria para ele.

- Quero fazer o que você me disser que faça – disse. – Coloco-me inteiramente nas suas mãos, Katharine.

- Você precisa tentar dizer-me o que sente – respondeu ela.

- Minha querida, sinto mil coisas a cada segundo que passa. Não estou certo de que não sei o que sinto. Aquela tarde na charneca... Foi lá, e então... – interrompeu-se. Não lhe disse o que acontecera. – Seu odioso bom senso, como sempre, convenceu-me por algum tempo, mas a verdade é que... só os Céus são capazes de dizer! – exclamou.

- Não é verdade que você está ou poderá estar apaixonado por Cassandra?

William curvou a cabeça. Depois de um momento de silêncio, murmurou:

- Creio que você tenha razão, Katharine.

Ela suspirou involuntariamente. Esperara o tempo todo, com uma intensidade que aumentava de segundo para segundo contra a corrente das palavras dele, que ao fim não chegaria a isso. Depois de um momento de surpreendente angústia, reuniu toda a sua coragem para dizer-lhe que só desejava pode ajudá-lo. E formulara as primeiras palavras de seus discurso quando soou uma batida na porta, terrível e assustadora para pessoas na condição de esgotamento nervoso em que estavam.

- Katharine, eu a venero – disse William, quase num sussurro.

- Sim – replicou ela, encolhendo-se com um pequeno calafrio -, mas você tem de abrir a porta.


Virgínia Woolf
Noite & Dia
Nova Fronteira – págs 249-250

domingo, junho 13, 2004

O corpo existe e pode ser pego. É suficientemente opaco para que se possa vê-lo. Se ficar olhando anos pode ver crescer cabelo. O corpo existe porque foi feito. Por isso tem um buraco no meio. O corpo existe, dado que exala cheiro. E em cada extremidade existe um dedo. O corpo se cortado espirra um líquido vermelho. O corpo tem alguém como recheio.


Arnaldo Antunes
As coisas
Editora Iluminuras – pg. 23

terça-feira, junho 08, 2004

A SALADA COM MOLHO COR-DE-ROSA

I
Conheci a Magda na praia
na praia é uma metáfora obscena
que como as outras metáforas obscenas
pode ser usada quer como eufemismo
quer como insulto
conheço por experiência própria
os dois usos da expressão
na praia

2
Eu gosto de me fazer passar
por uma rapariga ordinária
a Magda era mesmo ordinária
a princípio era isto o que mais
me atraía nela depois foi isto
o que sobretudo me desgostou dela

3
As minhas relações com a Magda
de deliciosas passaram a promíscuas
aconteceu-me
o que me tinha acontecido
quando comi salada com molho cor-de-rosa
ao princípio
a salada era deliciosa por causa do molho
depois comecei a perceber
que era mil vezes melhor
estar a comer os vegetais
sem molho do que com molho
o molho impedia-me de comer os vegetais
com gosto
desgostava-me da vida

4
Vivia com Magda
num quarto de duas camas
quando eu chegava ao quarto
a Magda estava deitada na minha cama
numa posição de Maja desnuda
mas vestida
o que era ainda pior
outras vezes encontrava-a
sentada na minha cadeira
a folhear meus livros
e a chupar os dedos

5
A Magda era uma intrusa
depois de ter sido um ser envoûtant
quer como intrusa
quer como ser envoûtant
ela era para mim
um fonte de perturbação

6
Eu não era casta
não porque me entregasse
com a Magda
(que era aliás uma praticante profissional do safismo)
a um prazer que alguns dizem vicioso
(só lhe toquei uma vez
sem querer
e pedi-lhe automaticamente desculpa}
mas porque com a Magda
não tinha prazer nenhum

7
(Acho que o prazer é casto
o que não é casto
é o simulacro do prazer
ou a renúncia ao prazer
tanto o simulacro
quanto a renúncia)

8
Um dia voltei ao quarto
e a Magda tinha desaparecido
sem deixar marcas
custou-me não encontrar
o chiqueiro próprio da Magda
os meus cigarros fumados
o meu cinzeiro cheio de beatas
sujas de bâton
(que me faziam lembrar
dentes cuspidos após uma briga)
o Las Moradas
antes do Calculus I
na minha estante
quando me habituei
a pôr esses livros por ordem inversa

9
O que me custou
foi ter tudo acabado
com tinha começado
como se nada se tivesse passado
durante
ora o que se passou durante
ainda hoje me incomoda
e portanto deve ter acontecido

Adília Lopes
ANTOLOGIA
7 Letras/ Cosac&Naify – pág. 24

domingo, junho 06, 2004

O triste fim de Clark Kent

Eram 2 olhos
primeiro
O escuro enclausurava o Herói
quase-morto
Depois veio a ponta do cigarro
o som de um escarro
o ruído repetitivo
do caminhão que batucava
ao longe
códigos morse definhantes
O Herói sentia-se
completamente inapropriado
(tinha medo
que lhe abrissem
a porta)
e nisso
não ouviu
os três tiros
que não o mataram

Bárbara Nunes (2003)

sábado, junho 05, 2004

dementira

Posso ir até você
com meu par de asas.
É de mentira, mas é meu.
Se não tem asas, azar o seu.


Christiano Menezes e Maria de Fátima
coração à francesa
Arte Ensaio – pg. 14

sexta-feira, junho 04, 2004

4

Uso um deformante para a voz.
Em mim funciona um forte encanto a tontos.
Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de uma pedra.
Tenho um senso apurado de irresponsabilidades.
Não sei de tudo quase sempre quando nunca.
Experimento o gozo de criar.
Experimento o gozo de Deus.
Faço vaginação com as palavras até meu retrato aparecer.
Apareço de costas.
Preciso de atingir a escuridão com clareza.
Tenho de laspear verbo por verbo até alcançar o meu aspro.
Palavras têm que adoer de mim para que se tornem mais saudáveis.
Vou sendo incorporado pelas formas pelos cheiros pelo som pelas cores.
Deambulo aos esgarços.
Vou deixando pedaços de mim no cisco.
O cisco tem agora a importância de Catedral.

Manoel de Barros
RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA
Record – pág 21

quinta-feira, junho 03, 2004

CAPÍTULO XIX

A TARDE JÁ ESCURECIA quando os dois outros excursionistas, Mary e Ralph Deham, alcançaram a estrada real, fora dos limites de Lincoln. A estrada, ambos estavam de acordo, era mais indicada para esta viagem de volta do que o campo aberto, e durante a primeira milha pouco falaram. Na sua cabeça, Ralph acompanhava o progresso do coche dos Otways através da charneca. Retrocedeu, depois, um pouco, aos cinco ou dez minutos que passara com Katharine, e examinou cada palavra com o zelo que um letrado consagra às irregularidades de um velho texto. Decidira que o fulgor, o romance, a atmosfera desse encontro não deveriam colorir o futuro que só ele poderia considerar como fatos simples e desataviados. Por seu lado, Mary calava-se, não porque sua atividade mental fosse por demais elaborada, porque seu cérebro parecia esvaziado de pensamentos e seu coração de qualquer sentimento. Só a presença de Ralph, bem sabia, preservava esse entorpecimento, pois podia muito bem antecipar o momento de solidão em que várias espécies de dor a assaltariam de tropel. No momento presente, seu esforço consistia em salvar o que fosse possível do naufrágio do seu amor-próprio, pois era assim que via aquele momentâneo vislumbre do seu amor tal como involuntariamente revelado a Ralph. À luz da razão, não inmportava muito, talvez, mas era instinto dela cuidar da imagem de si mesma, que fora atingida pela sua confissão. A noite cinzenta que descia sobre a terra era generosa para com ela; e pensou que, um desses dias, encontraria refrigério em sentar-se sozinha no chão, debaixo de uma árvore. Olhando através da escuridão, observou o terreno alterado e a árvore. Sobressaltou-se ao ouvir Ralph dizer abruptamente:

- O que eu ia falar, quando fomos interrompidos durante o almoço, era que se você for para a América eu também vou. Não pode ser mais difícil ganhar a vida lá do que aqui. Todavia a questão não é essa. A questão, Mary, é que quero casar com você. Bem, o que você me diz? – Falou com firmeza, não esperou por resposta, e enfiou o braço dela no seu. – Você já me conhece bem a essa altura, o que eu tenho de bom e de mau. Você conhece o meu temperamento. Procurei mostrar-lhe os meus defeitos. O que diz, Mary?

Ela não disse nada, e isso não pareceu impressioná-lo.

- De muitas maneiras, pelo menos nas coisas importantes, como você disse, nós nos conhecimentos e pensamos da mesma forma. Creio que você é a única pessoa no mundo com a qual eu poderia viver feliz. E se você pensa do mesmo modo a meu respeito, como pensa, não é, Mary?, faremos felizes um ao outro. – Fez uma pausa e pareceu não estar com pressa de receber uma resposta. Parecia, mesmo, disposto a prosseguir no seu raciocínio.

- Sim, mas receio que não possa fazer isso – disse Mary por fim. A maneira casual e mais ou menos apressada com que falou, além do fato de que dizia exatamente o oposto do que ele esperava, perturbou-o a tal ponto, que afrouxou o aperto no braço dela, e ela o tirou discretamente.
- Não poderia fazer?

- Não, não poderia casar com você.

- Você não gosta de mim?

Ela não respondeu.

- Bem, Mary – disse ele, com uma estranha risada -, devo ser um imbecil completo, porque pensei que você gostava. – Caminharam um trecho em silêncio, e subitamente ele se virou para ela, olhou-a e exclamou:

- Não acredito em você, Mary. Não está dizendo a verdade.

- Estou cansada demais para discutir, Ralph – respondeu, virando a cabeça para o lado. – Peço-lhe que acredite em mim. Não posso casar com você. Não quero casar com você.

A voz com que disse isso era tão claramente a voz de uma pessoa num extremo de angústia, que Ralph não pôde senão obedecer. E logo que o som da voz dela morreu, e a surpresa apagou-se da sua mente, ele se pôs a crer que ela dizia a verdade, pois não era vaidoso, e a recusa pareceu-lhe natural. Passou, então, por todos os graus de abatimento até chegar ao fundo de total depressão. O fracasso parecia marcar toda a sua vida. Falhara com Katharine, e agora com Mary. Imediatamente, expulsou o pensamento de Katharine e, com ele, um sentimento exultante de liberdade, que ele, porém, dominou prontamente. Nenhum bem jamais lhe viria de Katharine; sua relação com ela fora sempre feita da matéria dos sonhos. E ao pensar na pouca substância de tais sonhos, começou a responsabilizá-los pela presente catástrofe.

“Pois não pensei sempre em Katharine quando estava com Mary? Poderia ter amado Mary se não fosse por essa tolice. Ela já gostou de mim, tenho certeza, mas tanto a atormentei, que deixei que as oportunidades escapassem, e agora ela não quer arriscar-se a casar comigo. Foi isso que fiz da minha vida: nada, nada, nada.”

O som das suas botas na estrada endurecida parecia confirmar o que dizia: nada, nada, nada. Mary viu no silêncio dele um alívio; quanto à depressão, atribui-a ao fato de ele ter visto Katharine, deixando-a em seguida, e na companhia de William Rodney. Não podia culpá-lo por amar Katharine; culpava-o, sim, pelo fato de pedir que se casasse com ele quando amava outra. Isso parecia-lhe a mais cruel das traições. A velha amizade entre os dois e sua firme base de indestrutíveis qualidades de caráter desmoronaram, e seu passado inteiro lhe pareceu tolo, ela própria fraca e crédula, e Ralph apenas a carapaça de um homem honesto. Oh, o passado! Muito dele era feito de Ralph. E, agora, de alguma coisa estranha e falsa e diversa daquilo que pensara. Tentou recapitular um dito que compusera nessa manhã para se ajudar, enquanto Ralph pagava a conta do almoço; mas podia vê-lo pagando a conta mais vivamente do que era capaz de recordar a frase. Algo sobre a verdade: de como ver a verdade é a nossa grande chance nesse mundo.

- Se você não quer se casar comigo – começou Ralph outra vez, sem rudeza, até com hesitação -, não há motivo para que deixemos de ver um ao outro. Ou haverá? Você preferia que nos afastássemos por enquanto?

- Afastássemos? Não sei. Preciso pensar.

- Diga-me uma coisa, Mary – resumiu ele -, terei feito alguma coisa que levou você a mudar de idéia a meu respeito?

Ela ficou imensamente tentada a dar vazão à sua natural confiança nele, revivida pelos tons profundos e, agora, melancólicos da sua voz, e falar-lhe do seu amor por ele e daquilo que o tinha alterado. Embora perecesse provável que conseguisse provar sua ira, a certeza de que ele não a amava, confirmada por todos os termos da sua proposta de casamento, proibia-lhe a liberdade da palavra. Ouvi-lo falar, e sentir-se incapaz de responder-lhe, ou sentir-se constrangida nas suas respostas, era tão penoso, que passou a aspirar pelo momento em que ficaria sozinha. Mulher mais maleável teria aproveitado esse momento de uma explicação, fossem quais fossem os riscos envolvidos; para alguém com o temperamento firme e resoluto de Mary, não havia degradação na idéia do abandono de si mesma; que as ondas da emoção se levantassem bem alto, nem por isso ela poderia fechar os olhos àquilo que concebia como verdade.

O silêncio de Mary deixava Ralph perplexo. Buscou na memória palavras ou fatos que pudessem tê-la feito pensar mal dele. Na disposição em que se encontrava, os exemplos pululavam até depressa demais, e por cima deles, esta prova culminante da sua baixeza: pedira-lhe que casasse com ele quando seus motivos eram egoístas e carentes de entusiasmo.

- Não precisa responder – disse, com amargura. – Há razões suficientes, eu sei. Mas deverão matar a nossa amizade, Mary? Deixe-me guardar pelo menos isso.

“Oh”, pensou ela consigo, com uma súbita angústia que prenunciava desastre para seu amor-próprio, “ter chegado a isso, a isso! Quando eu poderia dar-lhe tudo!”

- Sim, podemos ser amigos, ainda – disse ela, com a firmeza que conseguiu reunir.

- Vou precisar da sua amizade – disse ele, e acrescentou: - Se você achar possível, quero vê-la tanto quanto puder. Quanto mais freqüentemente, melhor. Vou precisar da sua ajuda.

Ela prometeu que sim, e passaram a falar calmamente de coisas alheias aos seus sentimentos, numa conversa que, tão constrangida era, pareceu infinitamente triste aos dois.

Ainda uma referência foi feita ao estado de coisas entre eles, tarde da noite, quando Elizabeth foi para o quarto, e os dois rapazes se arrastaram para a cama, em tal estado de sono, que mal sentiam o assoalho debaixo dos pés, depois de um dia de caçada.

Mary puxou a cadeira um pouco para o fogo, pois as achas já estavam queimando baixo, e essa hora da noite não valia à pena reforçá-las. Ralph lia, mas percebera que, de tempos em tempos, seus olhos se fixavam acima das páginas com uma tristeza tão intensa, que chegava a pesar nela. Isso, porém, não enfraqueceu sua decisão de não ceder, pois a reflexão a tornara ainda mais amarga e certa de que, se viesse a ceder, seria ao seu próprio desejo, não ao dele. Mas estava decidida, não havia razão para que ele sofresse se a causa desse sofrimento fosse apenas a reticência dela. Por isso, embora custasse, falou:

- Você me perguntou se mudei a maneira de pensar a seu respeito, Ralph. Acho que houve apenas uma coisa: quando você me pediu para casar com você, não creio que o tivesse feito a sério. Foi isso que me enraiveceu, no momento. Antes, você dissera sempre a verdade.

O livro escorregou para o joelho de Ralph e caiu no chão. Ele apoiou a cabeça na mão e olhou o fogo. Tentava recordar as palavras exatas com que fizera sua proposta a Mary.

- Eu nunca disse que a amava – falou, por fim.

Ela estremeceu, encolheu-se. Mas respeitava-o por dizer o que tinha dito, pois isso, a final de contas, era um fragmento da verdade pela qual ela jurara viver.

- Para mim casamento sem amor não vale a pena – disse ela.

- Bem, Mary, não vou pressioná-la. Vejo que você não quer casar comigo. Mas amor – não falávamos todos um monte de tolices sobre isso? O que queremos dizer? Penso que gosto de você mais genuinamente do que nove entre dez homens gostam das mulheres que dizem amar. É só uma história que alguém compõe na cabeça sobre outra pessoa, e sabe o tempo todo que não é verdadeira. É claro que sabe; tanto que toma todo o cuidado para não destruir a ilusão. As pessoas cuidam de não se verem com demasiada freqüência, ou de não ficarem juntas por muito tempo seguido. É uma ilusão agradável, mas, se você pensa nos riscos de um casamento, quero crer que os riscos de casar com alguém que a gente ama são colossais.

- Não acredito numa palavra disso, e o que é mais, você também não acredita – ela replicou, com raiva. – Todavia, não concordamos. Eu apenas queria que você me entendesse. – Mudou de posição, como se estivesse prestes a sair. Um desejo instintivo de impedi-la de deixar a sala fez com que Ralph se levantasse e se pusesse a andar de um lado para o outro na cozinha quase vazia, dominando o desejo, cada vez que chegava à porta, de abri-la e ir para o jardim. Um moralista poderia dizer, a essa altura, que a mente dele devia estar cheia de auto-recriminações pelo sofrimento que causara. Pelo contrario: estava extremamente zangado, com a ira confusa e impotente de alguém que se vê absurda mas eficientemente frustrado. Fora apanhado numa armadilha pela falta de lógica da vida humana. Os obstáculos no caminho do seu desejo pareciam-lhe puramente artificiais, e no entanto não conseguia ver meio de removê-los. As palavras de Mary, o próprio tom da sua voz, enfureciam-no. Não estava disposta a ajudá-lo. Era parte de uma insana e embaralhada misericórdia de um mundo que torna impossível qualquer vida sensata. Teria querido bater com a porta ou quebrar as pernas de trás de uma cadeira – pois que os obstáculos haviam tomado essas curiosas formas substanciais na sua mente.

- Duvido que um ser humano possa jamais compreender outro – disse, interrompendo sua marcha e confrontando Mary de uma distância de uns poucos passos.

- Diabos de mentirosos que somos, todos nós. Não somos? Mas podemos tentar. Se você não quer casar comigo, não case; mas a atitude que você toma sobre o amor e sobre não nos vermos – não será puro sentimentalismo? Você acha que agi mal. Mas você não pode julgar as pessoas pelo que fazem. Você não pode andar pela vida com uma fita métrica e medir o certo e o errado. E é o que você está sempre fazendo, Mary; é o que está fazendo agora.

Ela se viu no escritório sufragista, julgando coisas, decidindo o certo e o errado, e pareceu-lhe que a acusação era justa até certo ponto, embora não afetasse a sua posição principal.

- Não estou zangada com você – disse devagar. – Vou continuar a vê-lo, como já ficou entendido.

Era verdade que prometera. E era difícil para ele dizer o que mais queria, alguma intimidade, alguma ajuda contra o fantasma de Katharine talvez, algo que sabia não ter direito de pedir; e, todavia, quando se afundou outra vez na cadeira e fitou de novo o fogo que morria, pareceu-lhe que fora derrotado; não tanto por Mary; pela vida mesma. Sentiu-se lançado de volta ao começo, quando tudo ainda tinha de ser conquistado. Só que na extrema juventude a gente tem uma esperança que a tudo ignora. Agora, já não estava certo de triunfar.

NOITE & DIA
Virgínia Woolf
Nova Fronteira - Págs 212-217