Acordei hoje com certo sentimento
de quem
fugiu pelo telhado
terminou a noite no banheiro
de quatro
descobriu que já se passaram dez anos
ou vinte ou 50
Hoje acordei com a face de mulher madura
e senti aquele desconforto
de passarinho que deixou de ser nuvem
e virou galho
Hoje acordei de mal
com o orvalho e as frutas
as camas e os cheiros
acordei amarela e pregada em álbum de fotos
chorei meu próprio enterro
despedi-me das flores
enterrei os verbos
Já há algum tempo que todas essas coisas me perseguem
e que os besouros me percebem as fragrâncias
e os odores da morte
da minha infância
morreu a criança
morreu a criança
Façam soar uma música bem alegre
porque alegre ela era
e dancem
e bebam
e caiam pelo chão dizendo zombarias
a criança morreu
meu coração parou
Hoje de manhã
acordei outra pessoa
vivi outra pessoa
no mesmo dia-a-dia de sempre
mas outro
Nesse dia-a-dia de sempre que eu vivi hoje
a música vem de fora
a cor vem de fora
não fui capaz de inventar o mundo
não fui capaz de descobrir nada
não tive esperanças
tampouco
No dia de hoje
nem lugar há para choro
ou qualquer outro sentimento
hoje morreu a criança
e acordei com 100 anos de idade
(acordei tão distante
de tudo
que nem a tristeza
fui capaz de inventar)
Bárbara Nunes (2006)
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