sexta-feira, fevereiro 13, 2009

CODA - Fahrenheit 451


Cerca de dois anos atrás, recebi uma carta de uma digna dama da universidade de Vassar dizendo-me quanto ela gostara de ler meu experimento em mitologia especial, "As crônicas marcianas".

Mas, acrescentava ela, não seria uma boa idéia, passado tanto tempo, reescrever o livro introduzindo mais personagens e papeis femininos?

Alguns anos antes disso, recebi certa quantidade de cartas relativas ao mesmo livro, reclamando que os negros do livro eram do tipo pai Tomás, e perguntando por que eu “não os criava de novo?”

Mais ou menos na mesma época chegava um bilhete de um branco sulista sugerindo que eu era preconceituoso em favor dos negros e que a historia deveria ser toda descartada.

Duas semanas atrás, minha montanha de cartas trazia uma cartinha insignificante de uma famosa casa editora que desejava reeditar meu conto “A sirene do nevoeiro” como livro de leitura para o colegial.

Em meu conto, eu havia falado de um farol que, tarde da noite tinha uma iluminação que saia dele como um “Deus-Luz”. Olhando para ele do ponto de vista de uma criatura marinha, tinha-se a impressão de se estar “diante da Presença”.

Os editores haviam eliminado “Deus-Luz e “diante da Presença”.

Ha uns cinco anos, os editores de uma outra antologia de leitura para escolas reuniram um volume com cerca de quatrocentos contos. Como se podem comprimir quatrocentos contos de Twain, Irving, Poe, Maupassant e Bierce em apenas um livro?

A simplicidade em si mesma. Esfole, desosse, desmonte, escarifique, derreta, encurte e destrua. Todo adjetivo de quantidade, todo verbo de movimento, toda metáfora que pesasse mais que um mosquito – eliminados! Todo símile que teria feito a boca de um submentecapto se contorcer – desaparecido! Quaisquer paralelo que explicasse a filosofia barata de um escritor de primeiro nível – perdido!

Cada conto, emagrecido, famelizado, editado, sangrado e tornado anêmico, se assemelhava a qualquer outro. Twain suava como Poe, que soava como Shakespeare, que soava como Dostoievski, que soava como – no final – Edgar Guest. Toda palavra com mais de três sílabas havia sido aparada. Toda imagem que exigisse ate um Segundo de atenção assassinada.



O leitor o odioso e inacreditável quadro?

Como reagi a tudo isso?

“Queimando” o lote inteiro.

Enviando bilhetinhos de rejeição a todos eles.

Despachando o conjunto de idiotas para os quintos dos infernos.

O sentido e óbvio. Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo esta cheio de pessoas carregando fósforos acesos. Cada minoria, seja ela batista, unitarista, irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista, sionista, adventista-do-sétimo-dia, feminista, republicana, homosexual, do evangelho-quadrangular, acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura insossa, como um mingau sem gosto, lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima de jardim-de-infância.


Beatty, o capitão dos bombeiros em meu romance Fahrenheit 451, explicou como os livros foram queimados primeiro pelas minorias, cada um rasgando uma pagina ou parágrafo desse livro e depois daquele, até que chegou o dia em que os livros estavam vazios e as mentes caladas e as bibliotecas para sempre fechadas.

“Feche a porta e eles passarão pela janela, feche a janela e eles passarão pela porta” são palavras de uma antiga canção. Elas harmonizam bem meu estilo de vida com os carrascos e censores estreantes a cada mês. Apenas de seis semanas atrás descobri que, ao longo dos anos, alguns editores bitolados da Ballantine Books, receosos de contaminar os jovens, haviam pouco a pouco censurado cerca de sessenta e cinco trechos do romance. Estudantes, ao lerem esse romance que, em ultima análise, trata da censura e da queima de livros no futuro, escreveram-me para contra sobre essa primorosa ironia. Judy Lyn Del Rey, uma das novas editoras da Ballantine, esta refazendo o livro inteiro, que será republicado neste verão com todas as “drogas” e todos os “diabos” de volta.

Um teste final para o velho Jô, 2, aqui: enviei uma peça, "Leviathan 99", para um teatro universitário um mês atrás. Minha peca se baseia na mitologia de “Moby Dick”, e dedicada a Melville e fala da tripulação de um foguete e de um capitão astronauta cego que se aventura a encontrar o Grande Cometa Branco e destruir o destruidor. O drama estreara como ópera em Paris no outono. Mas, por ora, a universidade escreveu respondendo que dificilmente ousaria encenar minha peça – não havia nenhuma mulher nela! E as senhoras da ERA (Equal Rights Amendment – emenda da igualdade de direitos) iriam atacar com tacos de beisebol se o departamento de teatro ate mesmo tentasse fazê-lo!

Rangendo meus pré-molares ate esfarinhá-los, sugeri que isso significaria, doravante, não produzir "Os rapazes da banda" (nenhuma mulher) ou "The woman" (nenhum homem). Ou, contando a cabeça de homens e mulheres, uma boa parte de Shakespeare jamais seria vista novamente, particularmente se enumerarmos as falas e descobrirmos que todas as boas ficam para os homens!

Respondi que talvez devessem encenar minha peca numa semana e "The Women" na seguinte, provavelmente acharam que eu estivesse brincando, e não estou bem certo de que não estava.

Pois este é um mundo louco e ficará mais louco se permitirmos que as minorias - sejam elas de anões ou gigantes, orangotangos ou golfinhos, adeptos de ogivas nucleares ou de conversações aquáticas, pre-computarologistas ou neo-luddistas, débeis mentais ou sábios – interfiram na estética. O mundo real é o terreno em que todo e qualquer grupo formula ou revoga leis como num grande jogo. Mas a ponta do nariz do meu livro ou dos meus contos ou poemas é onde seus direitos terminam e meus imperativos territoriais começam, mandam e comandam. Se os mórmons não gostam das minhas pecas, eles que escrevam as deles. Se os irlandeses detestam meus contos passados em Dublin, eles que aluguem máquinas de escrever. Se os professores e os editores das escolas elementares acharem que minhas frases trava-línguas partirão seus dentes-de-leite, eles que comam bolo rançoso embebido em chá fraco da sua própria produção apóstata. Se os intelectuais chicanos desejarem cortar novamente meu “maravilhoso terno sorvete [Wonderful Ice Cream Suit]” para que tenha o feitio de um terno popular [“zoot”], é possível que o cinto se solte e as calças caiam.

Encaremos, portanto – a digressão e a alma do intelecto. Tirem-se os apartes filosóficos de Dante, Milton ou do fantasma do pai de Hamlet e o que fica são ossos esquálidos. Laurence Sterne disse certa vez: “As digressões, incontestavelmente, são o brilho do sol, a vida, a alma da leitura! Elimine-as e um inverno eterno reinará em cada página. Restabeleça-as ao escritor – ele avança como um noivo, saúda a todas, introduz a diversidade e proíbe que o apetite fracasse”.

Em suma, não me insultem com decapitações, decepações de dedos ou esvaziamento de pulmões que pretendam fazem em minhas obras. Preciso de minha cabeça para rejeitar ou assentir, minha mão para saudar ou fechar em punho, meus pulmões para gritar ou sussurrar. Não irei gentilmente para uma prateleira, eviscerado, para me tornar um não-livro.

Todos vocês, juízes, voltem para as arquibancadas. Árbitros, para os chuveiros. A partida é minha. Eu arremesso, eu rebato, eu apanho. Eu corro as bases. No poente, ganhei ou perdi. No nascente, saio novamente, fazendo a velha tentativa.

E ninguém pode me ajudar. Nem mesmo vocês.

De: Ray Bradbury
Artigo publicado no final de Fahreinheit 451.
Ed. Globo.

Um comentário:

Naomi Conte disse...

o filme é bárbaro!(também pelo visto)