BAGUNÇA - é a idéia principal. Literatura, caricaturas, desenhos, crônicas. Tanto coisas minhas, quanto uma seleção de coisas outras. Manoel de Barros, Adília Lopes, Virgínia Woof, Maiakovisk, Ray Bradbury e, claro, Bárbara Nunes. De tudo um pouco. Se alguém se interessar.
quarta-feira, dezembro 30, 2009
há naquela criança
pelos cachos loiros
pelos olhos verdes
pela pele queimada de sol
pelo sorriso estampado no rosto de anjo de michelangelo ou alejadinho
que só daqui
de trás da penumbra fria do meu quarto encharcado de umidade
cigarro e noite
é possível ver
PARADOXALMENTE
como espremeria
os cravos
minhoquinhas gordas
cheias de idéias
saiam-lhe pelos ouvidos
atraindo peixes voadores
já bastante espertos
que observavam todo esse movimento
ao longe
em silêncio
quinta-feira, dezembro 24, 2009
quarta-feira, dezembro 23, 2009
O MARQUÊS DE CHAMILLY
MULHER AO ESPELHO
CENA
terça-feira, dezembro 22, 2009
A FÉ E AS MONTANHAS
segunda-feira, dezembro 21, 2009
PARA CASOS DE EMERGÊNCIA
meus algozes me ajudam tanto
que sempre tenho um ou dois
guardados na mesinha de cabeceira
domingo, dezembro 06, 2009
domingo, novembro 29, 2009
A Ovelha Negra
Foi fuzilada.
Um século depois, o rebanho arrependido lhe levantou uma estátua eqüestre que ficou muito bem no parque.
Assim, sucessivamente, cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente passadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e vulgares pudessem se exercitar também na escultura.
Augusto Monterrosso
in: A Ovelha Negra e outras fábulas
Editora Record
domingo, novembro 01, 2009
crepúsculo
Anoitece
com a escuridão se desfazem das trevas diárias
um tom azul escuro preenche as faltas
delinea as curvas existenciais de um poeta sem inspiração
com a noite envolvendo o mundo
até dor de barriga vira tema de poesia
abstrata
ainda que seja
e o pobre poeta sem talento
refastela-se da sua solidão:
coitados dos que
vivem sem ter com quem contar
e, mais ainda,
coitados daqueles que,
como eu,
nada têm a contar.
Rápida despedida
Olá.
O dia chuvoso, o frio e uma terrível dor de cabeça me fizeram começar esta carta. E agora que comecei, vamos até o fim.
Como você tem passado?
Nao, não responda.
Na verdade realmente não me importa.
Como você tem passado não motivou a carta, ou os pensamentos. ou a dor de cabeça.
Te escrevo simplesmente para dar adeus.
Adeus por quê?, você poderia bem perguntar.
Nos sentamos ali outro dia, tomamos um café. Depois outro.
Falamos. Você me trouxe em casa.
Eu agradeci sorrindo. Combinamos de nos ver outra vez qualquer hora.
E eu, de repente, escrevo dando adeus.
Pois é por isso mesmo.
Enquanto tomávamos o café e quando pedimos outro. E quando nos levantamos e eu me ofereci a carona. E quando nos despedimos apressadamente. Em nenhum desses momentos você notou nada de errado. Nada de estranho. E é por isso mesmo que agora te escrevo essa carta de adeus.
Não há motivo melhor para deixar de falar com alguém do que o siléncio que já exista. Entre nós não há mais palavras. Não há mais supresas. Há apenas eu e você, sentada do outro lado da mesa. Há dois ou quatro cafés tomados ainda quentes. Tomados apressadamente. Há o levantar da cadeira, o abrir cada uma um guarda-chuva e o adeus.
Em cada história de cada pessoa há sempre outras pessoas.
As pessoas, como o tempo, passam. As pessoas ocupam nosso tempo. Pessoas que passam não devem ter mais tempo. Nosso. A gastar.
Por isso, sem nenhum motivo maior, estou escrevendo para dizer que o tempo pra nós acabou.
Não me escreva nem releia esta carta.
Ela pertence ao passado.
O passado não existe.
Nem eu. Nem você.
Mantra
O escritor escreve, simplesmente.
Repetiu o mantra três vezes.
Mas o branco do papel e a tinta negra nunca ajudam em nada.
O dinossauro
Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.
De: Augusto Monterroso
http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/esp/monte/am.htm
A MENINA E A CAJAZEIRA
Arguém diz que o mundo presta,
Grit mêrmo em arto som,
Mas é tolo e nada sabe
Quem diz que este mundo é bom.
Como é que ele tem bondade
Se a nossa felicidade
Voa como o pensamento,
E da praça inté o campo
O gozo é cumo relampo,
Que abre e fecha num momento?
Dêrne do premêro dia
Que Adão mais Eva pecou,
A rosa criou espinho,
Tudo se desmantelou.
E Deus, vendo que a desgraça
De Adão, o chefe da raça,
Percisava sê comum,
Depressa sentenciou,
E uma parcela de dô
Reservou pra cada um.
Inté as arve do campo,
Que não ofende a ninguém,
Herdou aquela miséra,
Tem suas máguas tombém.
Muntas vêz, um pau bonito
Que os gáio vai no infinito
Parece alegre e feliz,
Mas quando o ráio lhe acerta,
Sapeca todo e concerta
Da copa inté a raiz.
Que curpa tem esse pau,
Promode o raivoso ráio
Lhe queimá de meio a meio,
Lascando gáio por gáio?
Se o pobre é um inocente
E o corisco, de repente,
Faz a maió anarquia,
Tá quage certo e provado
Que tudo vem do pecado
De adão, o pai de famia.
Tudo quanto a terra cria
Tem que passá sofrimento,
Tem seus momento de gôzo
E os seus ano de tromento.
As pobre arve, coitada,
Sem a ninguém devê nada
Sofre martiro e cansêra.
Cumo prova eu conto agora
A triste e penosa histora
Da menina e a cajazêra.
Num sito munto distante,
Na bêra de uma lagoa,
Morava um casá fié,
Uma gente muito boa.
Tinha uma linda criança,
Rizonha cumo a esperança,
Era linda e prazentêra.
E brincava todo o dia
Na sombra fresca e sadia
De uma bela cajazêra.
Bem juntinho de casa
A cajazêra nasceu,
Linhêra, iguá uma frecha,
No rumo do céu cresceu.
Era franzina, dergada,
Mas a copa arredondada
Não podia havê maió.
Quem reparava, dizia
Que a mêrma só parecia
Um grande chapé de só.
Entounce a linda criança,
Aquela boa menina,
Era o prazê e era a paz
Da cajazêra franzina.
Naquela sombra vevia,
Durante as horas do dia
Não se afastava dali,
Sempre contente, brincando,
Cheia de vida, zelando
Os seus brinquedos infantí.
Aquela copa vistosa
Pra inocente criança
Era um céu, um paraíso
Verde, da cô da esperança.
As ave fazia festa,
Tinha graça a doce orquesta
Daqueles musgo de pena,
Com seus requebrado canto,
Lovando o riso e o encanto
Daquela santa pequena.
Se o vento vinha de longe,
Todo amoroso, brincá,
Encrespando na lagoa,
As água cô de cristá,
Na cajazêra chegando
Era tão macio e brando
Cumo quem faz a escóia
De um amô e de um carinho,
Soprando devagarinho
Mode não derrubá fôia.
Tudo quanto era bondade,
Paz, inocença e beleza,
Vinha ali fazê morada
E de toda essa riqueza
A menina era a rainha,
Dava a entendê que Deus tinha
Pra o nosso mundo de increu,
Em favô daquele sito,
Mandado lá do infinito
Um pedacinho do céu.
Se em cima, na verde copa,
A passarada cantava,
Em baxo, na fresca sombra,
A criançinha brincava.
Aquela arve tão amiga,
Caridosa, sem fadiga,
De tudo era a potreção.
Sua copa arredondada
Vivia sempre enfoiada,
Que fosse inverno ou verão.
Mas a nossa curta vida,
Quando começa a sê bela,
O vento da negra sorte
Dá um sopro e desmantela.
Se o sito era um paraíso
De sossego, paz e riso,
Se aquela doce união
Foi grande felicidade,
Maió foi a crueldade,
E a dô da separação.
A amiga da cajazêra,
Tão nova, tão pequenina,
Perdeu ali um tesoro,
Pois a mão da triste sina
Robou-lhe a felicidade,
E umas água de orfandade
Dos óio dela caiu.
Quem era tão prazentêra,
Da querida cajazêra
Chorando se despediu.
Foi se embora soluçando
Aquela criança boa,
Dêxando luto e tristeza
La na bêra da lagoa.
E a cajazêra copada
Vendo a sua camarada
Da sombra se retirá
Levando o pranto no rosto,
De tanto sofrê desgosto
Nunca mais botou cajá.
Sentindo a sombra vazia,
Aquela pobre infeliz
Foi ficando deferente,
Acabrunhando as raiz,
E com a macha dos ano
E o choque dos desengano
Que o mau destino lhe deu,
A cajazêra franzina,
Com sodade da menina
Murchou a copa e morreu.
Morreu a pobre, sem curpa,
Sem devê nada a ninguém.
Inté as arve do campo
Tem suas mágoas tombém.
Ficou entonce a memora
Do dia e da crué hora
Daquele amargoso adeus,
Seca, no sito deserto.
Com os seus braços aberto,
Pedindo o socorro a Deus.
Quem lhe tinha conhecido
Na doce felicidade,
Vendo o seu grande abandono
Chorava de piedade,
Pois aquela cajazêra,
Bonita, alegre e linhêra,
Tava um pau véio, cacundo,
De gaio tingido e preto,
Parecendo um esqueleto
Chorando as dô desse mundo.
No gáio, onde os passarinho
Grogeava de manhã,
Ficou cantando somente
A feia e triste coã.
E de noite o vento afoito,
Roncando e lhe dando açoito,
Formava uma entoação
De causá medonho espanto,
Acompanhada do canto
Do agourento corujão.
E pra ficá bem provado
Que tudo o que a terra cria
Tem seus momento de gôzo
E os seus anos de agonia,
Ela foi, de pôco a pôco,
Banindo e criando oco,
Num desmante-lo sem fim,
E sujeita aos bichos mau:
O besôro serra-pau,
A broca, a traça e o cupim.
Tudo sofre, tudo pena,
A vida é pesada cruz,
Ninguém se julgue feliz,
Que aquilo que agora é luz
Mais tarde pode sê treva.
A curpa de Adão mais Eva
Se espaiou na terra intêra.
Tudo ali tornou-se em ruína,
Com a farta da menina
E a morte da cajazêra.
Inté a prope lagoa
Perdeu a quilaridade,
Criou nas águas uma sombra
Roxa, da cô da sodade.
Tudo nesse mundo passa,
O sito perdeu a graça,
Daquele sonho de amô
Hoje ali já nada existe,
Apenas o choro triste
Da rola fogo-pagou.
sábado, maio 16, 2009
quinta-feira, maio 14, 2009
terça-feira, abril 14, 2009
Gigante
a maldade do silêncio
cochichos
esquivos
em
meu julgamento
não
estou presente
a sentença
também
ouço
em silêncio
vazio
Bárbara Nunes - 2009
sexta-feira, fevereiro 13, 2009
CODA - Fahrenheit 451
Cerca de dois anos atrás, recebi uma carta de uma digna dama da universidade de Vassar dizendo-me quanto ela gostara de ler meu experimento em mitologia especial, "As crônicas marcianas".
Mas, acrescentava ela, não seria uma boa idéia, passado tanto tempo, reescrever o livro introduzindo mais personagens e papeis femininos?
Alguns anos antes disso, recebi certa quantidade de cartas relativas ao mesmo livro, reclamando que os negros do livro eram do tipo pai Tomás, e perguntando por que eu “não os criava de novo?”
Mais ou menos na mesma época chegava um bilhete de um branco sulista sugerindo que eu era preconceituoso em favor dos negros e que a historia deveria ser toda descartada.
Duas semanas atrás, minha montanha de cartas trazia uma cartinha insignificante de uma famosa casa editora que desejava reeditar meu conto “A sirene do nevoeiro” como livro de leitura para o colegial.
Em meu conto, eu havia falado de um farol que, tarde da noite tinha uma iluminação que saia dele como um “Deus-Luz”. Olhando para ele do ponto de vista de uma criatura marinha, tinha-se a impressão de se estar “diante da Presença”.
Os editores haviam eliminado “Deus-Luz e “diante da Presença”.
Ha uns cinco anos, os editores de uma outra antologia de leitura para escolas reuniram um volume com cerca de quatrocentos contos. Como se podem comprimir quatrocentos contos de Twain, Irving, Poe, Maupassant e Bierce em apenas um livro?
A simplicidade em si mesma. Esfole, desosse, desmonte, escarifique, derreta, encurte e destrua. Todo adjetivo de quantidade, todo verbo de movimento, toda metáfora que pesasse mais que um mosquito – eliminados! Todo símile que teria feito a boca de um submentecapto se contorcer – desaparecido! Quaisquer paralelo que explicasse a filosofia barata de um escritor de primeiro nível – perdido!
Cada conto, emagrecido, famelizado, editado, sangrado e tornado anêmico, se assemelhava a qualquer outro. Twain suava como Poe, que soava como Shakespeare, que soava como Dostoievski, que soava como – no final – Edgar Guest. Toda palavra com mais de três sílabas havia sido aparada. Toda imagem que exigisse ate um Segundo de atenção assassinada.
O leitor o odioso e inacreditável quadro?
Como reagi a tudo isso?
“Queimando” o lote inteiro.
Enviando bilhetinhos de rejeição a todos eles.
Despachando o conjunto de idiotas para os quintos dos infernos.
O sentido e óbvio. Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo esta cheio de pessoas carregando fósforos acesos. Cada minoria, seja ela batista, unitarista, irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista, sionista, adventista-do-sétimo-dia, feminista, republicana, homosexual, do evangelho-quadrangular, acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura insossa, como um mingau sem gosto, lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima de jardim-de-infância.
Beatty, o capitão dos bombeiros em meu romance Fahrenheit 451, explicou como os livros foram queimados primeiro pelas minorias, cada um rasgando uma pagina ou parágrafo desse livro e depois daquele, até que chegou o dia em que os livros estavam vazios e as mentes caladas e as bibliotecas para sempre fechadas.
“Feche a porta e eles passarão pela janela, feche a janela e eles passarão pela porta” são palavras de uma antiga canção. Elas harmonizam bem meu estilo de vida com os carrascos e censores estreantes a cada mês. Apenas de seis semanas atrás descobri que, ao longo dos anos, alguns editores bitolados da Ballantine Books, receosos de contaminar os jovens, haviam pouco a pouco censurado cerca de sessenta e cinco trechos do romance. Estudantes, ao lerem esse romance que, em ultima análise, trata da censura e da queima de livros no futuro, escreveram-me para contra sobre essa primorosa ironia. Judy Lyn Del Rey, uma das novas editoras da Ballantine, esta refazendo o livro inteiro, que será republicado neste verão com todas as “drogas” e todos os “diabos” de volta.
Um teste final para o velho Jô, 2, aqui: enviei uma peça, "Leviathan 99", para um teatro universitário um mês atrás. Minha peca se baseia na mitologia de “Moby Dick”, e dedicada a Melville e fala da tripulação de um foguete e de um capitão astronauta cego que se aventura a encontrar o Grande Cometa Branco e destruir o destruidor. O drama estreara como ópera em Paris no outono. Mas, por ora, a universidade escreveu respondendo que dificilmente ousaria encenar minha peça – não havia nenhuma mulher nela! E as senhoras da ERA (Equal Rights Amendment – emenda da igualdade de direitos) iriam atacar com tacos de beisebol se o departamento de teatro ate mesmo tentasse fazê-lo!
Rangendo meus pré-molares ate esfarinhá-los, sugeri que isso significaria, doravante, não produzir "Os rapazes da banda" (nenhuma mulher) ou "The woman" (nenhum homem). Ou, contando a cabeça de homens e mulheres, uma boa parte de Shakespeare jamais seria vista novamente, particularmente se enumerarmos as falas e descobrirmos que todas as boas ficam para os homens!
Respondi que talvez devessem encenar minha peca numa semana e "The Women" na seguinte, provavelmente acharam que eu estivesse brincando, e não estou bem certo de que não estava.
Pois este é um mundo louco e ficará mais louco se permitirmos que as minorias - sejam elas de anões ou gigantes, orangotangos ou golfinhos, adeptos de ogivas nucleares ou de conversações aquáticas, pre-computarologistas ou neo-luddistas, débeis mentais ou sábios – interfiram na estética. O mundo real é o terreno em que todo e qualquer grupo formula ou revoga leis como num grande jogo. Mas a ponta do nariz do meu livro ou dos meus contos ou poemas é onde seus direitos terminam e meus imperativos territoriais começam, mandam e comandam. Se os mórmons não gostam das minhas pecas, eles que escrevam as deles. Se os irlandeses detestam meus contos passados em Dublin, eles que aluguem máquinas de escrever. Se os professores e os editores das escolas elementares acharem que minhas frases trava-línguas partirão seus dentes-de-leite, eles que comam bolo rançoso embebido em chá fraco da sua própria produção apóstata. Se os intelectuais chicanos desejarem cortar novamente meu “maravilhoso terno sorvete [Wonderful Ice Cream Suit]” para que tenha o feitio de um terno popular [“zoot”], é possível que o cinto se solte e as calças caiam.
Encaremos, portanto – a digressão e a alma do intelecto. Tirem-se os apartes filosóficos de Dante, Milton ou do fantasma do pai de Hamlet e o que fica são ossos esquálidos. Laurence Sterne disse certa vez: “As digressões, incontestavelmente, são o brilho do sol, a vida, a alma da leitura! Elimine-as e um inverno eterno reinará em cada página. Restabeleça-as ao escritor – ele avança como um noivo, saúda a todas, introduz a diversidade e proíbe que o apetite fracasse”.
Em suma, não me insultem com decapitações, decepações de dedos ou esvaziamento de pulmões que pretendam fazem em minhas obras. Preciso de minha cabeça para rejeitar ou assentir, minha mão para saudar ou fechar em punho, meus pulmões para gritar ou sussurrar. Não irei gentilmente para uma prateleira, eviscerado, para me tornar um não-livro.
Todos vocês, juízes, voltem para as arquibancadas. Árbitros, para os chuveiros. A partida é minha. Eu arremesso, eu rebato, eu apanho. Eu corro as bases. No poente, ganhei ou perdi. No nascente, saio novamente, fazendo a velha tentativa.
E ninguém pode me ajudar. Nem mesmo vocês.
De: Ray Bradbury
Artigo publicado no final de Fahreinheit 451.
Ed. Globo.
sexta-feira, fevereiro 06, 2009
quinta-feira, janeiro 29, 2009
quarta-feira, janeiro 28, 2009
Os homens da Terra
Quem quer que estava a bater à porta não queria parar.
A Sra. Ttt abriu a porta de repelão.
- Então?
- Fala inglês! – exclamou, admirado, o homem que estava ali parado.
- Claro que falo.
- É inglês maravilhoso! – O homem vestia uniforme. Estavam três homens com ele, muito apressados, todos sorridentes e sujos.
- Que querem? – perguntou a Sra. Ttt.
- É uma marciana! – exclamou o homem, a sorrir. – A palavra não lhe é familiar, certamente. É uma expressão da Terra. – Acenou com a cabeça para indicar seus homens. – Somos da Terra. Eu sou o Comandante Williams. Descemos em Marte há-de haver uma hora. Aqui estamos, a Segunda Expedição! Houve uma primeira expedição, mas não sabemos o que lhes aconteceu. Aqui estamos nós, porém, e a senhora é a primeira marciana que conhecemos!
- Marciana? – As sobrancelhas da mulher arquearam-se.
- O que quero dizer é que vive no quarto planeta a contar do Sol. Não é verdade?
- Elementar – replicou, desabrida, a olhá-los.
- E nós... – o homem comprimiu a mão rosada e roliça contra o peito -, nós somos da Terra. Certo, homens?
- Certo, comandante! – responderam em coro.
- Este é o planeta Tyrr – disse a mulher -, se querem empregar o nome correto.
- Tyrr, Tyrr! 0 O comandante riu-se, como se não pudesse parar. Que belo nome! Mas, minha boa mulher, como se explica que fale um inglês tão perfeito?
- Não estou a falar. Estou a pensar. Telepatia! Bons dias! – E bateu com a porta.
Passados momentos, aquele homem horrível bateu outra vez.
Ela voltou a abrir a porta. “Que será agora?”, pensou.
O homem continuava no mesmo sítio, a tentar sorrir e com ar perplexo. Estendeu as mãos.
- Não creio que compreenda...
- O quê? – perguntou, desabrida.
O homem fitou-a, surpreendido antes de responder:
- Somos da Terra!
- Não tenho temop – respondeu ela – Hoje tenho muito o que cozinhar, além da limpeza, da costura e de tudo o mais. É evidente que desejam falar com o Sr. Ttt; ele está lá em cima, no escritório.
- Sim – concordou o homem da Terra, confusamente, a piscar os olhos. – Faça o favor de nos deixar falar com o Sr. Ttt.
- Ele está ocupado. – Bateu de novo com a porta.
Desta vez as pancadas na porta foram impertinentemente fortes.
- Ouça! – gritou o homem, quando a porta voltou a abrir-se, e entrou rapidamente como se quisesse surpreendê-la. – Isto não é maneira de tratar visitantes!
- Ai meu chão limpo! – protestou ela. – Lama! Saia! Se quiser entrar na minha casa, primeiro lave as botas!
O homem olhou, atrapalhado, para as botas enlameadas.
- Não é altura pata trivialidades. – declarou. – Penso que devíamos estar a celebrar. – Olhou-a demoradamente, como se olhar para ela pudesse fazê-la compreender.
- Se fez os meus bolinhos de cristal cair do forno – soluçou a mulher -, bato-lhe com um bucado de madeira!
Espreitou para dentro de um pequeno forno aceso. Voltou, vermelha e suada, com os olhos amarelos vivos e a pele suavemente castanha.era uma criatura magra e rápida como um inseto, com uma voz metálica e ríspida.
- Esperem aqui. vou ver se consigo que o Sr. Ttt lhe dispense um momento. Que assunto se trata?
O homem praguejou, irritado,, como se lhe tivessem batido na mão com um martelo.
- Diga-lhe que somos da Terra e que nunca isso foi feito antes!
- Não foi feito o quê? – perguntou, e levantou a mão castanha. – Não se incomode. Volto já.
O som de seus passos soou lentamente através da casa de pedra.
No exterior, o imenso céu azul marciano estava quente e parado como profunda água do mar. O deserto marciano parecia uma vasilha de lama pré-histórica, com ondas de calor a subir e tremeluzir. Uma pequena nave-foguetão reclinava-se no cume de um monte próximo. Grandes pegadas partiam do foguetão até a porta daquela casa de pedra.
Ouviu-se um som de vozes a discutir, no andar de cima. Os homens que tinham transposto a porta olharam uns para os outros, mexeram os pés, agitaram os dedos e enfiaram as mãos nos cintos.
Uma voz de homem gritou, em cima. A voz de mulher respondeu-lhe. Passados quinze minutos, os homens da Terra começaram a andar de um lado para o outro, dentro e fora da cozinha, sem nada que fazer.
- Vai um cigarro? – perguntou um deles.
Alguém tirou da algibeira um maço de cigarros e eles serviram-se e acenderam-nos. Expeliam pequenos jorros de fumo branco. Endireitaram os uniformes e ajustaram as golas. As vozes, em cima, continuavam num dize-tu-dizei-eu. O comandante dos homens consultou o relógio.
- Vinte e cinco minutos – observou. – que estarão eles a dizer lá em cima? – Aproximou-se da janela e olhou para fora.
- Dia quente – disse um dos homens.
- Sim – confirmou outro no tempo lento e quente do princípio da tarde.
As vozes tinham baixado para um murmúrio e agora estavam silenciosas. Não se ouvia um único som na casa. A única coisa que os homens ouviam era a sua própria respiração.
Decorreu uma hora de silencio.
- Oxalá não tenhamos causado nenhum problema – observou o comandante e foi espreitar na sala.
A Sra. Ttt estava lá, a regar umas flores que cresciam no meio do aposento.
- Bem me parecia que tinha me esquecido de alguma coisa – disse, quando viu o comandante, e dirigiu-se para a cozinha. – Lamento – acrescentou, e estendeu ao comandante um bocado de papel. – O Sr. Ttt está muito ocupado. – Desviou a atenção para os seus cozinhados. – Aliás, não é com o Sr. Ttt que devem falar, mas sim com o Sr. Aaa. Levem esse papel à quinta próxima, junto do canal azul, e o Sr. Aaa aconselhá-los á acerca do que querem saber.
- Não queremos saber de nada – protestou o comandante. – Já sabemos.
- Tem o papel, que mais quer? – perguntou-lhe ela, sem rodeios, e não disse nada.
- Bem... – resmungou o comandante, relutando em partir. Parado, como se esperasse qualquer coisa, parecia uma criança com os olhos postos numa árvore de natal despida. – Bem... – repetiu – Vamos, homens.
Os quatro Homens saíram para o dia azul e silencioso.
Meia hora depois, o Sr. Aaa, sentado em sua biblioteca a sorver um pouco de fogo elétrico de uma taça de metal, ouviu as vozes no exterior, no passadiço de madeira. Debruçou-se no parapeito da janela e viu quatro homens uniformizados, que olhavam para cima, para ele, de olhos semicerrados.
- É o Sr. Aaa? – perguntaram.
- Sou.
- O Sr. Ttt mandou-nos ver consigo! – gritou o comandante.
- Por que ele fez isso? – perguntou o Sr. Aaa.
- Estava ocupado!
- Ah, que pena! – exclamou o Sr. Aaa, sarcástico – Imaginará que não tenho nada mais que fazer ale de receber pessoas que ele está ocupado remais para atender?
- O importante não é isso, senhor – gritou o comandante.
- Bom, para mim, é. Tenho muito o que ler. O Sr. Ttt não tem consideração nenhuma.não é a primeira vez que procede tão incorretamente comigo. Pare de acenar com as mãos, senhor, até eu acabar. E preste atenção. As pessoas costumam escutar-me quando eu falo. E ou me escutam cortesmente ou não falo.
Pouco a vontade, os quatro homens do pátio mudaram de posição e abriram a boca, e nos olhos do comandante, cujas veias do rosto tinham engrossado, apareceram algumas lágrimas.
- Acham – perguntou, sentencioso, o Sr. Aaa – que é justo o Sr. Ttt ter tão más maneiras?
Os quato homens olharam para cima, através do calor, e o comandante disse:
- Somos da Terra!
- Acho muito pouco cavalheiro da parte dele – continuou o Sr. Aaa, ofendido.
- Uma nave-foguetão! Viemos nela.
- Sabem, não é a primeira vez que o Sr. Ttt tem sido desrazoável.
- Percorremos a distância toda da Terra até aqui!
- Sinto-me tentado a chamá-lo e dizer-lhe umas coisas.
- Só nós quatro: eu e estes três homens, os meus tripulantes.
- Vou chamá-lo. Sim! É isso que vou fazer!
- Terra. Foguetão. Homens. Viagem. Espaço.
- Vou falar-lhe e desancá-lo! – gritou o Sr. Aaa, que desapareceu como um Roberto de um palco.
Durante um minuto, ouviram-se vozes iradas cruzarem-se através de qualquer estranho mecanismo. Em baixo, o comandante e sua tripulação olhavam saudosamente para a sua bonita nave, deitada na encosta do monte, tão amena, encantadora e excelente.
O Sr. Aaa abriu a janela de repelão, desvairadamente triunfante.
- Desafiei-o para um duelo, pelos deuses! Para um duelo!
- Sr. Aaa... – recomeçou o comandante serenamente.
- Mato-o a tiros, ouviram?
O comandante mostrou um sorriso branco e murmurou aos seus homens, num aparte:
- Agora estamos a obter resultados!
E gritou ao Sr. Aaa:
- Viajamos quase cem milhões de quilômetro. Da Terra!
O Sr. Aaa bocejou.
- Isso são apenas oitenta milhões de quilômetros, nesta época do ano. – Pegou uma arma de aspecto assustado. – Bem, agora tenho que ir. Levem esse bilhete idiota, embora eu não veja que utilidade possa ter, e vão por aquele monte até a pequena cidade de Iopr e contem tudo ao Sr. Iii. É ele o homem com quem precisam falar. Não o Sr. Ttt, que é um idiota e que eu vou matar. Não comigo, porque não pertencem a à minha linha de trabalho.
- Linha de trabalho, linha de trabalho! – resmungou o comandante. – É preciso ter uma certa linha de trabalho para dar as boas-vindas a homens da Terra?
- Não seja pateta, toda gente sabe isso! – replicou o Sr. Aaa, a correr escada abaixo. – Adeus! – E correu pelo caminho a fora, como um compasso descompassado.
Os quatro viajantes ficaram imóveis, indignados. Por fim, o comandante disse:
- Ainda encontraremos alguém que nos ouça.
- Talvez devêssemos partir e voltar de novo – disse um dos homens, desalentado. – Talvez devêssemos decolar e pousar de novo, para lhes darmos tempo de organizar uma festa.
- É possível que isso seja uma boa idéia – murmurou o fatigado comandante.
A pequena cidade estava cheia de pessoas que transpunham a parta para dentro e para fora, diziam “olá” umas às outras, usavam máscaras douradas, máscaras azuis e máscaras escarlates, numa variedade agradável, e máscaras com lábios de prata e sobrancelhas de bronze, máscaras que sorriam ou máscaras carrancudas, consoante às disposições dos proprietários.
Os quatro homens, suados da longa caminhada, pararam e perguntaram a uma rapariga onde ficava a casa do Sr. Iii.
- Ali – respondeu a criança, com um inclinar de cabeça.
O comandante apoiou-se ansiosa e cuidadosamente em um joelho, a olhar para o encantador rosto da jovem pequenina.
- Quero falar contigo, minha menina.
Sentou-a no joelho e segurou nas suas grandes mãos as pequenas mãos castanhas, como se se preparasse para uma história de adormecer que ele compunha na sua mente, devagar e com uma grande e paciente felicidade de pormenores.
- Bem, as coisas passaram-se assim, pequenina. Há seis meses veio para Marte outro foguetão. Viajavam nele um homem chamado Yorque e seu ajudante. Não sabemos o que lhes terá acontecido. Talvez se tenham despenhado. Vieram num foguetão, como nós. Só queria que os visse! Um grande foguetão! Por isso somos a Segunda Expedição, que partiu a seguir à primeira. E viemos todo o caminho da Terra...
A rapariga soltou uma das mãos sem pensar e colocou no rosto uma inexpressiva máscara dourada. Depois pegou numa aranha de brincar dourada e deixou-a cair no chão, enquanto o comandante continuava a falar. A aranha de brincar subiu-lhe obedientemente para o joelho, enquanto ela a observava friamente através das fendas da máscara inexpressiva e o comandante a sacudia de mansinho e prosseguia com a sua história.
- Somos homens da Terra, acredistas-me?
- Sim – respondeu a rapariga, a observar a maneira como enterrava os dedos dos pés na areia.
- Óptimo. – O comandante beliscou-lhe um braço, um bocadinho jovialmente e um bocadinho maldosamente, para que ela olhasse para ele. – Construímos nossa própria nave foguetão. Acreditas nisso?
A rapariga meteu um dedo no nariz.
- Sim.
- E... Tira o dedo do nariz, menina, eu sou o comandante e...
- Nunca antes na História alguém atravessou o Espaço numa grande nave-foguetão – recitou a criaturinha, de olhos fechados.
- Maravilhoso, como saber?
- Oh, telepatia! – Limpou distraidamente o dedo no joelho.
- Bem, alguma vez te sentiste tão excitada? - Gritou o comandante. – Estás satisfeita?
- É melhor ir falar imediatamente com o Sr. Iii – aconselhou a garota, e deixou cair o brinquedo para o chão. – O Sr. Iii gostará de falar consigo. – Afastou-se a correr, com a aranha de brincar a saltitar obedientemente atrás dela.
O comandante continuou acocorado, a segui-la com o olhar de mão estendida. Tinha os olhos húmidos. Olhou para as mãos vazias e a boca entreabriu-se-lhe. Os outros três homens continuavam de pé, com as sombras debaixo deles. Cuspiram na rua de pedra...
O Sr. Ii abriu a porta. Ia para uma conferência, mas dispunha de um minuto, se eles entrassem depressa e lhe contassem o que desejavam...
- Um pouco de atenção – respondeu o comandante, de olhos vermelhos e fatigado. – Somos da Terra, temos um foguetão, somos quatro: tripulação e comandante, e estamos exaustos, famintos, e gostaríamos de um lugar para dormir. Gostaríamos que alguém nos oferecesse a chave da cidade, ou qualquer coisa do gênero, e gostaríamos que alguém nos apertasse a mão e dissesse “viva!”, e “Parabéns, meu velho!”. É mais ou menos isso.
O Sr. Iii era um homem alto, vaporoso e magro, com cristais azuis, foscos e grossos sobre os olhos amarelados. Debruçou-se para a secretária e consultou uns papéis, olhando de vez em quando para os visitantes, com extrema penetração.
- Bem, parece-me que não tenho aqui os formulários – declarou, a procurar nas gavetas da secretária. – mas onde os terei posto? – Ficou alguns momentos pensativo. – Hão de estar em qualquer lado... em qualquer lado. Oh! Cá estão! Pronto. – Distribuiu os papéis, desembaraçadamente. Tem de assinar esses papéis, evidentemente.
-É necessário toda esta patacoada?
O Sr. Iii lançou-lhe um denso olhar vítreo.
- Diz que é da Terra, não diz? Bem, então não há mais nada a fazer além de assinar.
O comandante assinou o nome.
- Quer que a minha tripulação assine também?
O Sr. Iii olhou para o comandante, olhou para os outros três e desatou a rir desdenhosamente.
- Eles, assinarem! Oh! Oh! Que maravilhoso! Eles, oh, eles assinarem! – Saltaram-lhe lágrimas dos olhos, deu uma palmada no joelho e reclinou-se, para deixar o riso sair-lhe da boca escancarada. Depois apoiou-se na secretária e levantou-se. – Eles, assinarem!
Os quatro homens tornaram-se carrancudos.
- Onde está a graça?
- Eles, assinarem! – suspirou o Sr. Iii, fraco de tanto rir. – Tão divertido! Tenho que contar isto ao Sr. Xxx! – Examinou o formulário preenchido, ainda a rir. – Parece estar tudo em ordem. – Acenou com a cabeça. Até a concordância com a eutanásia, se a decisão final sobre esse passo for necessária.
- A concordância para quê?
- Não fale. Tenho uma coisa para si. Aqui está, tome esta chave.
- É uma grande honra.
- Não é a chave da cidade, seu idiota! – replicou o Sr. Iii desabrido. – É apenas uma chave para a Casa. Desça aquele corredor, abra a porta grande, entre e feche bem a porta. Pode passar lá a noite. De manhã mando o Sr. Xxx vê-lo.
Duvidosamente, o comandante pegou a chave. Ficou parado, a olhar para o chão. Os seus homens não se mexeram. Pareciam esvaídos de todo o seu sangue e da sua febre do foguetão. Estavam exaustos, secos.
- Então, que se passa? – perguntou o Sr. Iii. – Por que espera? Que quer? – Aproximou-se e reclinou-se para perscrutar o rosto do comandante. – Vamos, desembuche!
- Não podia ao menos... – sugeriu o comandante. – Isto é, quero dizer, tentar, ou pensar... – hesitou. – Trabalhamos duramente, percorremos uma grande distância e talvez o senhor pudesse ao menos apertar-nos a mão e dizer: “Bom trabalho!” Acha que é possível? – A voz apagou-se-lhe.
O Sr. Iii estendeu a mão, todo empertigado.
- Felicitações! - exclamou a sorrir friamente. – Felicitações. – Voltou-se e acrescentou: - Agora tenho que ir andando. Utilize esta chave.
Sem voltar a prestar-lhes atenção, como se eles se tivessem derretido e escoado através do chão, o Sr. Iii deu uma volta pela sala, a encher uma pequena pasta de papéis. Demorou-se ainda mais cinco minutos, mas nem uma vez se dirigiu ao solene quarteto que estava imóvel de cabeça baixa, com as pernas pesadas sem força e a luz a apagar-se os olhos. Quando transpôs a porta, o Sr. Iii ia todo atento, a observar as unhas...
Arrastaram-se pelo corredor afora, na luz da tarde silenciosa e baça. Chegaram a uma grande porta de prata brilhante, que a chave de prata abriu. Entraram, fecharam a porta e voltaram-se.
Estavam em um vasto salão iluminado pelo sol. Homens e mulheres, sentados a mesas e de pé, conversavam em grupos. Ao ouvirem a porta, olharam para os quatro homens uniformizados.
Um marciano avançou e inclinou-se.
- Sou o Sr. Uuu – apresentou-se.
- Comandante Jonathan Williams, da Cidade de Nova Iorque, na Terra – respondeu o comandante, sem ênfase.
Foi como se o salão explodisse, acto contínuo.
A gritaria fez tremer as traves do teto. As pessoas correram para eles, a acenar e a gritar de contentamento, a derrubar mesas, a saltar, a agarrar nos homens da Terra e a erguê-los rapidamente para os ombros. Deram seis vezes a volta ao salão, percorreram seis vezes um círculo maravilhoso, a saltar e a cantar.
Os homens da Terra estavam tão atordoados que cavalgaram um minuto inteiro nos ombros da turba, antes de começarem a rir e a gritar uns aos outros:
- Eh! Isto está mais de conformidade!
- Isto é que é vida! Com a breca! Iúpi!
Piscaram tremendamente os olhos uns aos outros. Levantaram as mãos às palmas ao ar.
- Ena!
- Viva! – gritava a multidão.
Pousaram os homens da Terra em uma mesa. A gritaria acabou.
O comandante quase se desfez em lágrimas.
- Obrigado. É bom, é bom.
- Falem-nos de vocês – pediu o Sr. Uuu.
O comandante pigarreou.
A assistência abriu a boca em “ohs” e ahs”, enquanto o comandante falava. Ele apresentou seus tripulantes. Cada homem pronunciou um pequeno discurso e ficou embaraçado com os estrondosos aplausos que recebeu.
O Sr. Uuu deu uma palmada nas costas do comandante.
- É bom ver outro homem da Terra. Eu também sou da Terra.
- O quê? Como?
- Há aqui muitos de nós da Terra.
- Vocês? Da Terra? – perguntou o comandante, de olhos arregalados. – Mas será possível? Vieram de foguetão? As viagens espaciais terão estado a efectuar-se há séculos? – A sua voz exprimia decepção. - De que... de que país são?
- Tuiereol. Eu vim pelo espírito do meu corpo, há anos.
- Tuiereol. – O comandante repetiu a palavra. – Não conheço esse país. Que é isso de espírito do corpo?
- E a Menina Rrr, ali, também é da Terra. Não é Menina Rrr?
A Menina Rrr acenou afirmativamente e riu de modo estranho.
- E o Sr. Www, e o Sr. Qqq, e o Sr Vvv!
- Eu sou de Júpiter – declarou um homem, todo impante.
- Eu sou de Saturno – disse outro, de olhos a brilhar cinicamente.
- Júpiter, Saturno... – murmurou o comandante, a pestanejar.
Reinava agora um grande silêncio. As pessoas estavam de pé ou sentada à volta de mesas estranhamente vazias para mesas de banquete. Os seus olhos amarelos brilhavam e tinham sombras escuras sob as maças do rosto. O comandante notou pela primeira vez que não havia janelas: a luz parecia permear as paredes. Havia apenas uma porta. O comandante estremeceu.
- Isso é confuso. Onde fica esse tal de Tuiereol, na Terra? É perto da América?
- Que é América?
- Nunca ouviram falar da América! Diz que são da Terra e, contudo, não sabem!
O Sr. Uuu endireitou-se, irritado.
- A Terra é um lugar de mares e nada mais do que mares – declarou. – Não há terra nenhuma. Eu sou da Terra, e sei.
- Um momento – pediu o comandante, e recostou-se na cadeira. - Parece um marciano vulgar. Olhos amarelos. Pele castanha.
- A Terra é um lugar só de solva – Disse a Menina Rrr, orgulhosamente. – Eu sou de Orri, na Terra, uma civilização construída de prata!
O comandante virou a cabeça para o Sr. Uuu, e depois para o Sr. Www, o Sr. Zzz, o Sr. Nnn, o Sr. Hhh e o Sr. Bbb. Viu-lhes os olhos amarelos brilharem e apagarem-se na luz, focarem-se e desfocarem-se. Começou a tremer. Por fim, voltou-se para os homens e olhou-os sombriamente.
- Já compreenderam o que é isto?
- O que é, comandante?
- Não é nenhuma celebração – respondeu o comandante, fatigado. – Não é nenhum banquete. Essas pessoas não são representantes do governo. Isto não é nenhuma festa surpresa. Reparem nos olhos deles. Escutem-nos!
Ninguém respirava. Havia apenas um suave movimento branco de olhos pela sala fechada.
- Agora compreendo – continuou o comandante, cuja voz parecia muito distante – por que motivo toda a gente nos deu bilhetes e nos mandou de um para outro até encontrarmos o Sr. Iii, que nos mandou descer um corredor com uma chave para abrir e fechar uma porta. E aqui estamos...
- Onde estamos, comandante?
O comandante soltou um suspiro.
- Num manicômio.
Era noite. O grande salão estava silencioso e fracamente iluminado por fontes de luz ocultas nas paredes transparentes. Os quatro homens da Terra, sentados à volta de uma mesa de madeira, com as cabeças cansadas e inclinadas a murmurar. No chão, amontoavam-se homens e mulheres. Havia pequenos movimentos nos cantos escuros, homens ou mulheres solitários que gesticulavam. De meia em meia hora um dos homens do comandante tentava abrir a porta de prata e voltava para a mesa.
- nada feito, comandante. Estamos fechados e bem fechados.
- Eles pensam que somos realmente loucos, comandante?
- Sem dúvida. Por isso não houve nenhum alarido para nos dar as boas-vindas. Limitaram-se a tolerar o que, para eles, deve ser um estado psicótico recorrente. – Apontou os vultos escuros adormecidos a toda volta deles. – paranóicos, todos eles! Que boas-vindas nos dispensaram! Por momentos – uma pequena chama acendeu-se e morreu-lhe nos olhos -, pensei que estavam a nos dispensar nossa verdadeira recepção. Todos aqueles gritos, e cantos, e discursos! Muito bonito, não foi? Enquanto durou.
- Quanto tempo nos conservarão aqui, comandante?
- Até provarmos que não somos psicóticos.
- Isso deve ser fácil.
- Espero que sim.
- Não parece muito confiante, comandante.
- E não estou, olhem para aquele canto.
Estava um homem acocorado sozinho, na escuridão. Da sua boca saia uma chama azul que se transformava na forma redonda de uma pequena mulher nua. Desenvolvia-se suavemente no ar, em vapores de luz do cobalto, a murmurar e a suspirar.
O comandante apontou com a cabeça para outro canto. Encontrava-se lá uma mulher, de pé, a metamorfosear-se. Primeiro estava embebida numa coluna de cristal, depois fundia-se numa estátua dourada, finalmente num bastão de cedro polido e depois voltava a ser uma mulher.
Em todos os pontos do salão pessoas faziam malabarismos com finas chamas violetas, modificavam-se e transformavam-se, porque as horas noturnas eram o tempo da mudança e da aflição.
- Mágicos, feiticeiros – segredou um dos homens da Terra.
- Não, alucinações. Transferem para nós a sua insanidade, para que vejamos também as suas alucinações. Telepatia. Auto-sugestão e telepatia.
- É isso que o preocupa, comandante?
- É. Se as alucinações podem parecer-nos tão “reais” a nós, a qualquer pessoa, se as alucinações são contagiosas e quase críveis, não me admira que nos tomem por psicóticos. Se aquele homem é capaz de produzir pequenas mulheres de fumo azul e aquela mulher se transforma numa coluna, é natural que marcianos normais pensem que produzimos a nossa nave-foguetão com a nossa mente.
- Ah! – exclamaram os homens nas sombras.
À volta deles, no enorme salão, jorravam chamas azuis, ateavam-se e evaporavam-se. Pequenos demônios de areias vermelhas corriam entre os dentes dos homens adormecidos. Mulheres transformavam-se em serpentes viscosas. Havia um cheiro de répteis e animais.
De manhã, toda a gente se levantou com ar fresco, feliz e normal. Não havia chamas nem demônios na sala. O comandante e seus homens aguardaram junto à porta de prata, na esperança de que se abrisse.
O Sr. Xxx chegou ao fim de cerca de quatro horas. Desconfiaram de que ele esperava do outro lado da porta, a espreitá-los durante pelo menos três horas antes de entrar, lhes fazer sinal, e lhes conduzir ao pequeno gabinete.
Era um homem jovial e sorridente, a acreditar na máscara que usava e na qual estavam pintados não um sorriso, mas três. Atrás da máscara, a sua voz era a de um psicólogo não muito sorridente.
- Qual parece ser o problema?
- Pensa que nós somos loucos, e nós não somos – respondeu o comandante.
- Pelo contrário, não penso que sejam todos loucos – O psicólogo apontou com uma varinha o comandante. – Não. Só o senhor. Os outros são alucinações secundárias.
O comandante deu uma palmada no joelho.
- É então isso! Foi por isso que o senhor Iii se riu quando eu sugeri que os meus homens assinassem também os papéis!
- Sim, o Sr. Iii contou-me. – O psicólogo riu através da boca esculpida e sorridente. – Boa piada. Onde ia eu? Sim, alucinações secundárias. Procuraram-me mulheres com serpentes a saírem-lhes das orelhas. Quando as curo, as serpentes desaparecem.
- Gostaremos de ser curados. Trate disso.
O Sr. Xxx pareceu surpreendido.
- Isso não é usual. Não são muitas as pessoas que querem ser curadas. A cura é drástica compreende?
- Pois cure! Estou confiante em que verificará que estamos todos sãos de espírito.
- Permita que eu verifique os seus documentos, para ter a certeza de que estão em ordem para uma “cura”. – Consultou um ficheiro. – Sim. Sabe, casos como o seu exigem “cura” especial. As pessoas daquela sala são formas mais simples. Mas devo salientar que, quando se vai tão longe, com alucinações primárias, secundárias, auditivas, olfativas e labiais, assim como fantasias táteis e ópticas, o caso é muito grave. Temos que recorrer à eutanásia.
O comandante deu um salto e gritou:
- Escute aqui, já aturamos mais do que o suficiente! Examine-nos, dê-nos pancadas nos joelhos, ausculte nossos corações, submeta-nos a testes, faça-nos perguntas!
- É livre de falar.
O comandante falou desesperadoramente durante uma hora. O psicólogo escutou-o.
- Incrível! – exclamou. - A fantasia onírica mais pormenorizada que já ouvi.
- Com mil raios, nós mostramos-lhe a nave-foguetão! – gritou o comandante.
- Gostaria de a ver. Pode manifestá-la nesta sala?
- Oh, com certeza! Está aí nesse ficheiro, na letra N.
O Sr. Xxx consultou gravemente o ficheiro. Fez “tsc”, “tsc” e fechou o ficheiro, com solenidade.
- Por que me mandou procurar? A nave não está lá.
- Claro que não, seu idiota! Eu estava a brincar. Um homem louco brinca?
- Às vezes encontram-se alguns com sentido de humor. Agora leve-me à sua nave. Quero vê-la.
Era meio dia e estava muito calor quando chegaram à nave.
- Hum... – O psicólogo aproximou-se da nave e deu-lhe uma pancadinha. O metal produziu um ruído leve. – Posso entrar? – perguntou o Sr. Xxx, maliciosamente.
- Pode.
O Sr. Xxx entrou e demorou-se muito tempo.
- Que coisa estúpida e exasperante! – exclamou o comandante a mascar um charuto enquanto esperava. – Estou com uma vontade danada de voltar para casa e dizer às pessoas que não se incomodem mais com marte. Que corja de brutos desconfiados!
- Suponho que um bom número da sua população é louca, meu comandante. Parece ser essa sua principal razão para desconfiarem.
- Não obstante, tudo isto é extremamente irritante.
O psicólogo saiu da nave após meia hora de bisbilhotar, dar pancadinhas, escutar, cheirar e provar.
- Agora acredita! – exclamou o comandante, como se o outro fosse surdo.
O psicólogo fechou os olhos e coçou o nariz.
Este é o exemplo mais incrível de alucinação sensual e sugestão hipnótica que jamais encontrei. Percorri a sua “nave-foguetão”, como lhe chama. – Voltou a dar pancadinhas no casco. Ouço-a. fantasia auditiva. – Aspirou. – Cheiro-a. Alucinação olfativa, induzida por telepatia sensual. – Beijou a nave. – Saboreio-a. fantasia labial!
Apertou a mão do comandante.
- Permite que o felicite? É um gênio psicótico! Fez uma obra muitíssimo completa! O trabalho de projetar uma imagem psicótica na mente de outra pessoa via telepatia, e de evitar que as alucinações se tornem sensualmente mais fracas, é quase impossível. Aquelas pessoas que estão na Casa concentram-se geralmente em fantasias visuais ou, no máximo, em fantasias visuais e auditivas combinadas. O senhor conglomerou a combinação completa!
- A minha insanidade – repetiu o comandante, pálido.
- Sim, sim. Que maravilhosa insanidade! Metal, borracha, gravitadores, alimentos, vestuário, combustível, armas, escadas, parafusos, porcas, colheres! Encontrei dez mil itens independentes na sua nave. Nunca vi semelhante complexidade. Até havia sombras debaixo dos beliches, debaixo de tudo! E tudo, como u quando testado, tinha um cheiro, uma solidez, um sabor, um som. Permita-me que o abrace!
Pro fim recuou.
- Farei disso minha monografia! Falarei do seu caso na Academia Marciana do próximo mês. Olhe para si! Até mudou a cor de seus olhos de amarelo para azul, a da sua pele de castanho para rosado! E essas roupas, e as suas mãos com cinco dedos em vez de seis! Metamorfoses biológicas através de desequilíbrio psicológico. E os seus três amigos...
empunhou uma pequena arma.
- Incrível, claro. Pobre homem maravilhoso! Será mais feliz morto. Tem algumas últimas palavras a dizer?
- Pare, pelo amor de Deus! Não dispare!
- Triste criatura! Libertá-lo-ei deste tormento que o levou a imaginar esta nave-foguetão e estes três homens. Será muito impressionante ver os seus três amigos e o seu foguetão desaparecerem quando eu o matar. Escreverei um belo ensaio sobre a dissolução de imagens neuróticas a partir do que observei aqui, hoje.
- Sou da Terra. O meu nome é Jonathan Williams e estes...
- Sim, bem sei – interrompeu apaziguadoramente o Sr. Xxx, e disparou.
O comandante caiu, com uma bala no coração. Os outros três homens gritaram.
O Sr. Xxx fitou-os.
- Continuam a existir? Soberbo! Soberbo! Alucinações com persistência e temporal e espacial! – Apontou-lhes a arma. – Bem, faço-os desaparecer com um susto.
- Não! – gritaram os três homens.
- Um apelo auditivo, mesmo com o paciente morto – observou o Sr. Xxx, enquanto abatia os três homens a tiro.
Eles ficaram na areia, intactos, sem se mexerem.
O Sr. Xxx deu-lhes pontapés. Depois bateu na nave.
- persiste! Eles persistem! – Disparou diversas vezes a arma contra os cadáveres e depois recuou e a máscara sorridente caiu-lhe do rosto.
Lentamente, a cara do pequeno psicólogo modificou-se. O queixo pendeu-lhe. A arma caiu-lhe dos dedos. Os olhos tornaram-se baços e vagos. Levantou as mãos e descreveu um círculo , ás cegas. Mexeu nos corpos, com a saliva a escorrer-lhe da boca.
- Alucinações – tatamudeou, desvairado – Gosto, vista, cheiro, som, tacto. – Agitou as mãos, os olhos pareceram querer saltar-lhe das órbitas. Da boca, começou a sair-lhe um pouco de espuma.
- Desapareçam! – gritou aos corpos. – Desaparece! – gritou à nave. Observou suas mãos trêmulas. – Contaminado. – murmurou, enlouquecido. – passou para mim. Telepatia. Hipnose. Agora eu estou louco. Agora estou contaminado. Alucinações em todas as suas formas sensuais. – Parou e tacteou, com as mãos entorpecidas, á procura da arma. – Só há uma cura. Só há uma maneira de os fazer desaparecer, dissolverem-se.
Soou um tiro. O Sr. Xxx caiu.
Os quatro corpos ficaram caídos no chão. O Sr. Xxx jazia onde caíra.
O foguetão continuou reclinado no pequeno monte salheiro e não desapareceu.
Quando a gente da cidade encontrou o foguetão, ao pôr do sol, interrogou-se acerca do que era. Mas ninguém sabia. Por isso, foi vendido a um ferro-velho e levado para ser transformado em sucata.
Nessa noite choveu a noite toda. O dia seguinte esteve bonito e quente.
De: Ray Bradbury
Em: Crônicas Marcianas
Editora (portuguesa): Caminho. Pgs: 25 a 40