sexta-feira, novembro 24, 2006

AGENDA POÉTICA

de Mario Quintana

(Essa é da época em que agendas ainda eram divertidas...)


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A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda.

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VERBETE
Autodidata – Ignorante por conta própria.

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INFINITOS
O homem, esse exagerado, acha o Cosmos infinitamente grande e o micróbio infinitamente pequeno. E ele? Ora, ele acha-se do tamanho natural.

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COISAS DO TEMPO
Com o tempo, não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros.

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O PIOR
O pior dos problemas da gente é que
Ninguém tem nada a ver com isso.

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CAMUFLAGEM
A esperança é um urubu pintado de verde.

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DO IMPOSSÍVEL CONVÍVIO
O mais trágico dessas reuniões sociais é que elas são compostas unicamente de terceiros.

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VISITAS
Não é só quando eu estou trabalhando que as visitas importunam: é quando não estou fazendo nada.

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O segredo da arte – e o segredo da vida –
É seguir o seu próprio nariz.

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Um verdadeiro nariz conduz para a frente.

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...eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente.

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OS RETRATOS
O pior de nossos retratos é que vão ficando cada dia mais jovens.

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Dizer bobagens areja a alma e faz
a gente gozar com a cara do outro.

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MANIFESTAÇÕES DE AMOR
Uma das mais deliciosas manifestações de amor
é a falta de respeito.

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O sábado passou, azul como uma vaca.

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DOS ELEFANTES
O único defeito dos elefantes é não serem portáteis.

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Mas há os que se refugiam de Deus nas igrejas.


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Há palavras que parecem exatamente o que querem dizer.
“Esparadrapo”, por exemplo.

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Antes de mais nada, um cachorro serve para a gente falar sozinho... Que o digam esses errantes vagabundos de estradas, a quem pode faltar tudo na vida, menos um cachorro...

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CONVERSA BEM BRASILEIRA
- Desculpe, minha senhora, mas não consigo lembrar se a conheço do último carnaval, da última greve, ou da última enchente...

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Ruazinha em que eu penso às vezes
Como quem pensa em outra vida...

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Ninguém é levado a sério com idéias originais.

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CARTAZ PARA UMA FEIRA DO LIVRO
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.

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TRECHO DE DIÁRIO
Sempre fui metafísico. Só penso na morte, em Deus e em como passar uma velhice confortável.

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Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que nunca acho que escrevi algo à minha altura.

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Nunca dês um nome a um rio.
Sempre é outro rio a passar.

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DAS FRASES HISTÓRICAS
Desconfio que essas frases históricas foram inventadas pelos historiadores, pois como poderiam os grandes homens ter tido, todos eles, aquele mesmo estilo de dramalhão?

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IMAGEM
Haverá ainda, no mundo, coisas tão simples e tão puras como a água bebida na concha das mãos?

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DO SABOR DAS COISAS
Pos mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é excelente:
Aquele que tu bebes tranquilamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo...

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Foi tudo falso o que ela te disse?
Fecha os olhos e crê: a mentira é tão linda!
Nem ela sabe que fingir meiguice
É o mais certo sinal de que te ama ainda...

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O amor é um barato romance pornô esquecido em cima da cama depois que cada um partiu – sem saionará nem nada – por uma porta diferente.

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DA INDULGÊNCIA

Não perturbes a paz da tua vida,
Acolhe a todos igualmente bem.
A indulgência é a maneira mais polida
De desprezar alguém.

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Que este mundo pode ser que não preste,
Mas é tão bom de olhar!

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DAS NOTAS DE UM ECOLOGISTA
Quando acabarem todos os elefantes, acabará a bondade do mundo.

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Não que tenhas morrido...
Quem entra em um poema não morre nunca...

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A vida é tão bela que chega a dar medo.

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PARAÍSOS
As religiões cresceram entre os humildes porque aqueles que estavam por cima já se julgavam no paraíso.

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DO ESTILO
Se alguém acha que está escrevendo muito bem, desconfia...
O crime perfeito não deixa vestígios.

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CORTAR
Cortar, cortar sempre, meu único processo. E qualquer dia desses publico mais uma edição de minhas obras com a indicação seguinte: NOVA EDIÇÃO, CORRETA E DIMINUÍDA.

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O PRETO
O preto tem a vantagem de realçar as cores que o cercam sem nada perder no entanto da sua própria e grave afirmação.

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Se me queres,
enfim,
tem que ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais ainda...

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VIDA SOCIAL
O gato é o único que sabe manter-se com indiferença num salão.
As outras indiferenças são afetadas.

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DEGRADAÇÃO
Tenho uma pena enorme dos homens famosos, que por isso mesmo perderam sua vida íntima e são como esses animais do zoológico, que fazem tudo à vista do público.

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FORÇA DO HÁBITO
Um dia meu cavalo voltará sozinho e, assumindo sem querer a minha própria imagem e semelhança, virá ler, naquele café de sempre, o nosso jornal de cada dia.

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COVARDIA
É uma covardia falar mal dos inimigos:
Só se deve falar mal dos amigos.

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Qualquer confissão não passe de um testemunho pessoal sobre a natureza humana.

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Nunca é demais repetir que aprender português unicamente pela gramática é tão absurdo como aprender a dançar por correspondência.

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Quem olha um ovo, que parece um rosto sem olhos, sem boca, sem nariz, tem vontade de pintar-lhe tudo isso que falta.

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VIGILANTES NOTURNOS
Ao que fazem amor não estão fazendo apenas amor:
Estão dando corda ao relógio do mundo.

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ENTOMOLOGIA
Ah, essas horrendas classificações científicas. Mas a libélula é tão linda que o seu nome científico é libélula mesmo.

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DA AMÁVEL INDIFERENÇA
Amabilidade é quando a gente convive toda a existência com alguém e jamais lhe dá a entender que ele perdeu há anos uma perna ou perdeu um dia a cabeça.

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POR QUE SERÁ?
Por que será que eles sempre antepõem a uma afirmativa animadora uma exclamação de espanto (mas como você está bem disposto! etc.)? Como se fosse de minha obrigação andar sempre tuberculoso ou em estado de coma.

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A SEGUDA ADOLESCÊNCIA
As velhinhas são brotos às avessas.

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CONSELHO A UM ROMÂNTICO TARDIO
Não, não tomes um pifão! O melhor para amores mal correspondidos é uma feijoada completa. Enquanto estiveres jiboiando, como é possível pensar na ingrata, como é possível pensar no que quer que seja, como é possível pensar, em suma?

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AS ILUSÕES PERDIDAS
Fumar é um jeito discreto de ir queimando as ilusões perdidas.

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DIÁLOGO NOITE A DENTRO
- Mas há as que nos compreendem...
- Ah, mas essas são as piores!

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É ISSO MESMO
Quem nunca se contradiz deve estar mentindo.

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Não leia romances, leia poesias. Ou melhor, leia dicionários.

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EPÍGRAFE DA FILOSOFIA
O exercício da filosofia nunca solucionou coisa nenhuma.
É como jogar xadrez consigo mesmo...
Fica-se eternamente empatado.

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PERCALÇOS DA POSTERIDADE
O mais irritante de nos transformarem um dia em estátuas é que a gente não pode coçar-se.

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MAPA SECRETO
Na mancha do pêlo das vacas o menino estuda a geografia de suas ilhas imaginárias.

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Não tenho vergonha de dizer que estou triste,
Não dessa tristeza criminosa dos que,
em vez de se matarem, fazem poemas:
Estou triste porque vocês são burros e feios
E não morrem nunca...

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A burrice é invencível.

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DA BOA E DA MÁ IGNORÂNCIA
A ignorância rasa e simples é coisa honesta e conserva desanuviado o entendimento. Mas Deus te livre, meu filho, da ignorância complicada.

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A CADA PASSO
A cada passo topamos com um desses cidadãos de idade provecta que, lá pelas tantas, suspira fatalmente e diz: “Ah os bons velhos tempos...” Bobagem, meu velho! Os tempos são sempre bons: vocês é que não prestam mais.

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AS MÁS COMPANHIAS
O que mais irrita os jovens é quando lhes aconselham que evitem as más companhias... Como se eles pudessem perder-se por conta própria!

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O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar.

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Do que eu ia escrever até esqueço...
Para que pensar? Também sou da paisagem...

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Morreu ontem.
Portanto, seu retrato está completo.

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EPÍGRAFE
As únicas coisas eternas são as nuvens...

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PROVÉRBIO
O seguro morreu de guarda-chuva.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Neila,
Te telefonei hoje e não consegui dizer-te nada, fiquei muito emocionado de ouvir a tua voz. Estou ouvindo João Gilberto. I want to back to my baby.
Te amo, te amo, te amo... eu vejo a tua cara em todo lugar, o tempo todo. Nada me interessa a não ser me lembrar de você. Eu não quero te esquecer. Não é que eu não consiga, eu quero me lembrar de você o tempo todo. Essa é a minha verdade. Não é uma questão de ser feliz ou não, é uma questão de ser coerente com a minha alma.

Neila,
Depois desta carta vou te telefonar de novo, espero conseguir dizer-te alguma coisa. Estou disposto a arriscar te procurar inutilmente. Sou pouco hábil com palavras, do outro lado desta carta, de cabeça pra baixo, ou de cabeça pra cima, te amo, te odeio ou tudo é o mesmo.

peréio


Por que se mete, porra?
Delicadezas de Paulo Cesar Peréio
Editora do Bispo – Pág. 93

segunda-feira, outubro 23, 2006

Prefácio Interessantíssimo

1. Leitor:
Está fundado o Desvairismo.

2. Este prefácio, apesar de interessante, inútil.

3. Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.

15. Todo autor acredita na valia do que escreve. Si mostra é por vaidade. Si não mostra é por vaidade também.

21. “O vento senta no ombro das tuas velas!” Shakespeare. Homero já escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens a cavalos. Mas você deve saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.

23. Já raciocinou sobre o chamado “belo horrível”? É pena. O belo horrível é uma escapatória criada pela dimensão de certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito da beleza. Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me outro dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu Emílio Bayard: “O fim lógico de um quadro é ser agradável de ver. Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da feiúra. O artista sublima tudo”.

31. O impulso clama dentro de nós como turba enfurecida. Seria engraçadíssimo que a esta se dissesse:
“Alto lá! Cada qual por sua vez: e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o fim!” A turba é confusão aparente. Quem souber afastar-se idealmente dela, verá o imponente desenvolver-se dessa alma coletiva, falando a retórica exata das reivindicações.

34. A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo “ão”.

55. O passado é lição para se meditar, não para reproduzir.
“E tu che sé costí, anima viva,
Partiti da cotesti che son morti”.

63. Está acabada a escola poética. “Desvairismo”.

64. Próximo livro fundarei outra.

65. E não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum só.

66. Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. “Toda canção de liberdade vem do cárcere”.

Mário de Andrade
trechos in Paulicéia Desvairada

domingo, setembro 10, 2006

PÁGINA EM BRANCO
COMEÇO
ENTRE LINHAS SE FAZEM
OS VERSOS
OU NÃO
PÁGINA NEM TÃO BRANCA
MEIO AMARELADA
DO LADO
UM BORRÃO
UM RISCO
UM RASGO
A PÁGINA AMARELA
(DEI ESSE NOME A ELA)
SE TRANSFORMA
EM TELA ABANDONADA
DEIXADA AO LADO
DA IDÉIA
A PÁGINA AMARELA
REVELA A ALMA
DE UM CERTO POETA
QUE NÃO EXISTIU
NAQUELE MOMENTO
NÃO EXISTIU
SE FOI
NEM VEIO
A PÁGINA AMARELA
CONFESSA O EMBARAÇO
A MÃO QUE FREIOU
O SOM QUE NÃO SAIU
A PÁGINA AMARELA
ENSAIA
O FRACASSO
DE UM POEMA QUE
DESMAIA
QUE NADA!
A PÁGINA É UM MAR
DE IMPOSSIBILIDADES
EXISTENTES
PRESENTES
E EXIBIDAS
FUNDAMENTALMENTE
EXIBIDAS
COMO O SÃO
NOSSAS MUSAS FALECIDAS
E AS QUE
INFELIZMENTE
AINDA NÃO ESTÃO

Bárbara Nunes (2006)

terça-feira, setembro 05, 2006

Poema sem título de Paulo Leminski

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

segunda-feira, agosto 21, 2006

melancolia

Acordei hoje com certo sentimento
de quem
fugiu pelo telhado
terminou a noite no banheiro
de quatro
descobriu que já se passaram dez anos
ou vinte ou 50

Hoje acordei com a face de mulher madura
e senti aquele desconforto
de passarinho que deixou de ser nuvem
e virou galho

Hoje acordei de mal
com o orvalho e as frutas
as camas e os cheiros
acordei amarela e pregada em álbum de fotos
chorei meu próprio enterro
despedi-me das flores
enterrei os verbos

Já há algum tempo que todas essas coisas me perseguem
e que os besouros me percebem as fragrâncias
e os odores da morte
da minha infância
morreu a criança
morreu a criança

Façam soar uma música bem alegre
porque alegre ela era
e dancem
e bebam
e caiam pelo chão dizendo zombarias
a criança morreu
meu coração parou

Hoje de manhã
acordei outra pessoa
vivi outra pessoa
no mesmo dia-a-dia de sempre
mas outro

Nesse dia-a-dia de sempre que eu vivi hoje
a música vem de fora
a cor vem de fora
não fui capaz de inventar o mundo
não fui capaz de descobrir nada
não tive esperanças
tampouco

No dia de hoje
nem lugar há para choro
ou qualquer outro sentimento
hoje morreu a criança
e acordei com 100 anos de idade
(acordei tão distante
de tudo
que nem a tristeza
fui capaz de inventar)

Bárbara Nunes (2006)

quarta-feira, agosto 16, 2006

Da utilidade da poesia

De Elisa Lucinda

Talvez a poesia seja pioneira no setor de “auto-ajuda”, antes de haver editorialmente este termo. Desde adolescentes colecionamos versinhos de diversos autores em agendas e, muitas vezes, dizemos deles: “esse verso sou eu! Parece que ele me conhece!”. Outras vezes um verso salva uma pessoa, noutras, muda uma vida ou várias. Tenho dedicado minha vida a popularizar o gênero. Como sabemos, até hierarquicamente o gênero poesia é desprezado. As premiações para romance e contos, por exemplo, nos mais prestigiados concursos do mundo são sempre mais avultosas do que os valores para a poesia. Como se pudesse haver hierarquia entre os gêneros. Acabo de publicar o meu primeiro livro de contos e pude me ver diante da insististe pergunta afirmativa de variados jornalistas: “bem agora que você já está escrevendo contos, pretende também chegar até o romance? “Ora falam como se houvesse uma evolução. Estamos falando da arte da escrita e cada uma de suas modalidades possui um tecido diferente. Acaso nas artes plásticas um escultor é melhor do que um pintor? Muitas vezes o cara é um grande romancista e não foi capaz de um verso; eu não conheço nenhum poema de Virgínia Woolf, e tão pouco posso dizer que Fernando Pessoa é menor do que Gabriel Garcia Marques.

Estou dizendo que a poesia sofre de discriminação, preconceito e de desprestígio por parte de livreiros, editores e consequentemente do público a quem não é oferecida está pérola de forma atraente. Ora, se a poesia está na fala das crianças (A lágrima é magoa da água), nos provérbios populares (Quem não vive para servir não serve para viver / O que a gente leva da vida é a vida que a gente leva), nas cartas dos apaixonados (Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure), nas folhinhas dos calendários (Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas), nas letras de música (Se eu quiser falar com Deus tenho folgar os nós das gravatas, dos sapatos, dos anseios, tenho que esquecer a data, tenho que perder a conta, tenho que ter mãos vazias, ter a alma e o corpo nus.), nos sermões religiosos (Não diga a Deus o tamanho dos seus problemas, diga aos seus problemas o tamanho do seu Deus).

Pois bem se ela está em toda parte, por que não vende? Por que é considerada menor? Arrisco em dizer que a gênese dessa dificuldade de circulação da poesia esteja no ensino básico onde a criança é apresentada ao poema e o professor (salvo raras exceções) não sabe lê-lo. Para se ler um poema há uma tendência universal de impostar a voz e se distanciar do tema para priorizar a sua forma. Carrega-se a mão na tinta ao se eleger as rimas no exagero sonoro de exaltá-las, criando assim uma “música” previsível e aprisionante que faz parecerem iguais todos os poemas. Esse jeito formal de tratar o verso quando é dito nos saraus de declamação ou na sala de aula prejudica a comunicação e a transmissão da mensagem que aquele verso traz, além de entediar e muitas vezes fazer adormecer seu público alvo. Na maioria das vezes a forma gráfica desta escrita ilude o leitor e o orador, levando-o a respirar a cada fim de verso atropelando o seu sentido, cortando o fluxo de uma oração, separando o verbo do seu complemento, o adjetivo de seu substantivo, criando uma distância violenta e uma montanha de “non sense” entre a poesia e seu espectador. Vou dar um exemplo no fragmento do poema de Manuel Bandeira:

“Teu corpo de maravilhas
quero possuí-lo no leito
estreito da redondilha.”

Infelizmente, algumas vezes pude assistir esses versos sendo lidos dando uma pausa no “leito”, separando bruscamente o adjetivo “estreito” que dá qualidade ao “leito”, se falado junto. Porém, quando os separamos criamos um discurso doido que suspende qualquer entendimento lógico.

Tenho dedicado minha vida à difusão da poesia em todos os meios de comunicação para todos os públicos e idades. Quando tinha apenas onze anos, minha mãe, percebendo o meu gosto por esta arte já na escola, me levou para estudar declamação. Por sorte a professora era uma mulher especial e foi me dizendo logo que o seu curso era, não de declamação, mas de Interpretação Teatral da Poesia. Eu não entendi logo o que isso significava, mas gostei e essa senhora querida, Maria Filina Sales Sá de Miranda me ensinou a ler o poema contando a sua história, só dando pausas ditadas pelo sentido e não pela forma. Essa escola onde permaneci por seis anos consecutivos e dela só saí para ingressar no teatro, deu um vetor diferencial no tratamento poético para mim. A experiência nos palcos do Brasil e de alguns outros países, me levou a criar a Escola Lucinda de Poesia Viva, cujo lema é “falando poesia sem ser chato”. Este lema nasceu porque quando iniciei meus espetáculos monólogos poéticos no Rio de Janeiro, descobrimos que se colocássemos a palavra poesia nos cartazes de divulgação afastávamos o publico que certamente pensava o que inúmeras vezes verbalizou: “Ah não, monólogo e poesia ainda por cima..., não vou suportar!” Foi preciso então que muita gente testemunhasse que era possível outra forma de experênciar a poesia e ver que meus recitais, ao contrario dos outros, não deixava ninguém dormir na poltrona, para que eu pudesse como hoje estampar a palavra poesia nas peças publicitárias desses espetáculos, sem medo de espantar ninguém. A experiência diversificada durante estes anos falando para auditórios de duas mil pessoas, cinco mil e até quarenta mil me fez concluir que o segredo dessa comunicação está em trazer para a poesia a musicalidade das conversas, digo das conversações cotidianas. Se o poema nasce do cotidiano ele deve ter o seu acento, sua “imperfeição” humaníssima, seus muxoxos, seus naturais gestos que jamais devem ser ensaiados antes. Pois da mesma maneira que quando falamos o texto da nossa vida real, utilizamos nossas mãos e todo nosso corpo como agente de expressão espontânea, assim devemos fazê-lo com os versos, gesticulando sem pensar nisso. Se devolvemos à poesia seu sotaque original, seu desejo de ser compreendida, sua musicalidade informal de conversa, de “charla”, seu dom de comunicação se cumpre e encontra seu alvo. Muita gente me diz que era virgem de poesia antes de conhecer esse modo de dizer, que antes se sentia menor, excluído e incapaz de compreender um poema. A experiência me diz que a culpa raramente é do poema e sim de seus declamadores. Na Escola Lucinda de Poesia Viva costumo dizer aos meus alunos que eles passarão por uma “clínica de desintoxicação” para que se libertem do “vício” de aprisionar o poema numa “música” formal e limitada como se fosse um chato discurso político, que nos acompanha desde criança.

Caí dentro desse assunto tratando este “produto” com iniciativas de multimídia. Explico: ao publicar um livro, também o lanço em forma de espetáculo, de CD e agora de DVD, além de utilizar a televisão e o rádio para dizer poemas a cada entrevista. Essa atitude traz maior circulação e consumo do gênero. Coleciono uma série de exemplos que comprovam, não só a utilidade mas a necessidade da poesia no mundo; me lembro do ano passado durante o Fórum de Cultura em Barcelona quando uma senhora me disse que tinha trocado suas pílulas anti-depressivas por uma dose diária do meu espetáculo poético “Parem de falar mal da rotina ”. De outra vez uma senhora aluna minha de oitenta anos, Dona Elza, me disse que havia perdido um neto e nem tinha tido espaço pra sofrer por se sentir na obrigação de consolar a filha no seu desespero atroz; certo dia Elza ao entrar na livraria abriu, por curiosidade, um livro de Carlos Drumonnd Andrade e se deparou com um poema que ressignificava o conceito da palavra ausência dizendo que ausência é, não uma falta, mas um excesso de presença do objeto amado. De alguma maneira esse pensamento aliviou o coração da avó e curou a depressão da mãe. D’outra vez um jornalista de uma grande revista brasileira me ouviu dizer um poema meu que se chama “Libação”, cujos versos finais mudaram sua vida:

“A vida não tem ensaio
mas tem novas chances
Viva a burilação eterna, a possibilidade
o esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
a duração inútil dos rancores
Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
a vida inédita pela frente
e a virgindade dos dias que virão!”

Pois ao ouvir essas palavras, Leôncio refletiu sobre sua carreira e admitiu que se considerava um embuste como jornalista e que poderia viver sendo mais honesto com os seus sonhos. A partir daí e na mesma semana, mesmo indo contra seus familiares, pedira demissão dos seus vinte anos de revista “Veja” e com o dinheiro recebido abriu uma livraria chamada “Esquina da Palavra” que era o seu sonho desde menino e da qual sou madrinha a seu convite; o batizado, eu nem preciso dizer, foi um recital.
Há um poema (Choro à capela) de Adélia Prado que também produz milagres:

“O poder que eu quisera é dominar meu medo.
Por esse grande dom troco meu verso, meu dedo,
meus anéis e colar.
Só meu colo não ponho no machado,
porque a vida não é minha.
Com um braço só, uma só perna,
ou sem os dois de cada um, vivo e canto.
Mas com todos e medo, choro tanto
que temo dar escândalo a meus irmãos.
...................................................................................
Tristeza é o nome do castigo de Deus
e virar santo é reter a alegria.
Isso eu quero.”

O primeiro milagre (que eu saiba) que esse poema operou foi com uma aluna que o estudou durante um workshop para professores em Recife. Depois que Marina, essa professora simples da escola pública da zona rural pernambucana, disse esse poema de cór, nervosa e emocionada, mas muito bem dito, para um platéia de mil pessoas que a aplaudiu de pé, recebi uma carta sua que dizia mais ou menos assim:
“Elisa, foi uma experiência maravilhosa esse curso para mim, depois daqueles três dias mágicos estudando um poema mágico e conhecendo outros, passei a ver poesia em tudo: no pão quentinho nas mãozinhas dos meus filhos pela manhã, na alegria dos meus alunos, no vento da tarde e tirei da minha vida tudo que não é poesia. O primeiro a sair foi meu marido. Obrigada por tudo.”

Depois em outro workshop no interior do Rio de Janeiro veio falar comigo uma aluna, Ivone, que nos seus trinta e cinco anos exibia dedos das mãos e dos pés entortados por um processo de artrose cavalar. Pois na hora da escolha de poemas ela se aproximou de mim particularmente e disse que havia me visto dizer um poema na tv e que deu vontade de saber um poema de cor para experimentar da mesma sensação que ela experimentara ao me ver, só que no papel de dizedora. Ivone, no entanto, revelou não saber que poema escolher, uma vez que seu dilema era a triste doença que aleijava sua juventude a passos largos. Ela então me perguntou o que eu faria se estivesse em seu lugar. Respondi que a achava muito corajosa e que se eu tivesse os dedos tortos, a princípio tentaria escondê-los por vergonha. Mas que ela, ao contrário, trazia as unhas muito bem feitas, pintadas de vermelho e os tortos dedos cheios de anéis, e que além disso, maior defeito físico era o medo, que paralisava pessoas não portadoras de nenhum defeito físico e que, no entanto, não estavam ali, bravamente como ela. Sugeri o “Choro à Capela” e Ivone o abraçou com unhas e dentes e no segundo dia do curso, voluntariamente, foi a primeira a apresentá-lo, memorizado, emocionando a todos, toda linda de dentro dum vestido colante de oncinha. Ivone casou logo depois com um dos que a viram dizer esse poema nesse dia.
Há dois anos fui convidada a jantar com meu grande amigo ator, autor de telenovelas e diretor de teatro, Miguel Falabella. Na ocasião ele me falava que havia perdido o pai que tanto amava e por isso, obviamente estava muito triste. Lembrei-me então de um outro poema de Adélia chamado “Leitura”:

“Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras.
As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha
de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora do seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que lá fora o mundo havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,
os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer pra gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.”


E assim seguiu o nosso jantar “poético”, porque ao final de cada tema de nossas vidas e de nossos assuntos, eu tirava da manga um poema oportuno. Foi quando ele me disse que aquilo exercia nele uma maravilha curativa sem medida e que eu deveria criar postos de “Emergência Poética” pela cidade do Rio de Janeiro, onde moramos, para que as pessoas pudessem apresentar seus problemas e ter a solução prescrita em versos.

Meus amigos, a poesia é uma jóia como gênero e não está abaixo e nem acima de nenhum outro. Tem o poder de ser ambulante, de poder andar no bolso, no coração, na sala de aula, entre amantes, no meio de uma sedução, no meio de uma tese, no meio de uma palestra, num julgamento, num programa de tv, num passeio, num churrasco, numa canção, num teatro, numa festa, e merece atenção e tapetes vermelhos por parte dos profissionais de literatura. Me despeço com um fragmento do “Credo”, o meu poema mais caçula.

“Porque sou humano e creio no divino da palavra,
pra mim é um oráculo a poesia!
É meu tarô, meu baralho, meu tricô, minha reflexão, minha bruxa, meu caldeirão,
meu I ching, meu dicionário, meu cristal clarividente, meu búzio, meu copo com água, meu conselho, meu colo de avô,
a explicação ambulante de tudo o que pulsa e arde..
A poesia é síntese filosófica, fonte de sabedoria e bíblia dos que, como eu, crêem na eternidade do verbo, na ressurreição da tarde e na vida bela, amém!”

De: Elisa Lucinda
O original pode ser encontrado em: http://www.escolalucinda.com.br/downloads/Da%20utilidade%20da%20poesia.doc

terça-feira, agosto 15, 2006

Diário de Bugrinha

(trecho)

5.3

A voz de meu avô arfa. Estava com um livro debaixo dos olhos. Vô! o livro está de cabeça pra baixo. Estou deslendo.


Manoel de Barros
"Livro Sobre Nada" (Arte de Infantilizar Formigas)
Editora Record - Rio de Janeiro, 1996, pág. 29.

segunda-feira, junho 26, 2006

Se eu fosse um padre

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessa
sou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma...
e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!

Mário quintana

quinta-feira, abril 27, 2006

Ferida

Ferida de arma
desconhecida
perita, fina,
vem sem erro essa lâmina
mas vem sem motivo

Ou então o motivo
é exatamente o não-motivo
e aí está a graça
do tempo da ferida
assim é que ele
é mais divertida

Se é que pode ser assim
uma ferida

Ou meus pais
não se separam,
ou antes,
foi a morte
eu nunca tive religião,
ou melhor,
tive todas
hoje tenho uma mescla
feita de medo e máscula
uma mescla inferior
feita de morte

E vou andando atrás
de outras feridas
a dos homens
e também a dos cães,
sempre vivas
merda é que não consegui
me esconder das rimas
mesmo quando somente
soantes as putas
se empilhavam
e tapam a fenda
pois é sábio que elas
têm que respirar
as feridas
é sábio que desde
a primeira (essa do sexo)
elas precisam de ar
para manter-se vivas
e feridas.
E acabadas.

Há feridas porém que
nasceram fechadas.

Renata Pallottini

quinta-feira, abril 20, 2006

mentirosa

comecei por uma careta disfarçada
e por aí fui
esfregando bem os olhos vermelhos
fazendo força para manter-me ereta
escondendo uma ânsia de vômito inventada
no final ela estava absolutamente certa
eu nos enganava

Bárbara Nunes (2006)

segunda-feira, abril 17, 2006

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência,
essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, março 22, 2006

quinta-feira, março 09, 2006

O Mundo é um moinho

Ainda é cedo amor
mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Presta atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
E em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavastes com teus pés

Cartola

quarta-feira, março 08, 2006

pesadelos

não há silêncio
pelo contrário - é verão
os líquidos gordurosos do seu corpo se confundem
com as gotas de respiração que anuviam as janelas
espera
há alguma fascinação nesse processo
como tirar cera de certas protuberâncias corpóreas
como escrever cravos
como espremer gente
(e lembrar e lembrar)
é verão. mas isso ainda não diz nada
você suspira
medonha
no lençol as gotas do seu suor já deixaram marcas
mas não há mais marcas
- apenas a umidade gordurosa dos toques –
de repente
nota o barulho e o movimento de um ventilador de teto
insistente perniciosamente
insistente
e totalmente necessário
não há silêncio
pelo contrário
– é verão.

Bárbara Nunes (2006)

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

SEMPRE QUE CHOVE

Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!

Mario Quintana
Preparativos de Viagem

Cenário

Sobre uma mesa está o mapa
Dois toques
Passa o tempo

De um canto da sala surge um homem preocupado
As linhas do mapa lhe soam apressadas
E não têm porque
O homem tem um charuto
Que não fuma

Olha o mapa
Os pontos cardeais não apontam direções
Destoam a realidade
O mapa destina-se a quê? pergunta-se
Vai ao fim da sala
Uma vitrine de coisas passeantes lá fora
Que não representam nada

Tampouco

Bárbara Nunes (2004)

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Diálogos?

Você tinha me dito alguma coisa a respeito do... Você nem ao menos se lembra. Não, nada disso. Eu lembro muito bem, só me fugiu um instante. Não. Esquece. Não vale à pena. Não há nada a ser entendido. Você nunca me espera para nada. Não me dá tempo. Preciso estar pronto e preparado. Sempre. Pronto e preparado, não é? É como a gente aquele dia na praia. Disso você se lembra. Não lembra? Você esqueceu. Foi por querer. Foi silepse. Você sempre fala que é silepse. Acho que silepse é, na verdade, o seu alter-ego. Há há há. Valeu. Walter é foda. Eu não tenho palavras para descrever tudo o que a gente anda vivendo. Toda essa merda que a gente anda vivendo, você quer dizer? Eu com as minhas complicações e você cheia delas. Não tinha mesmo como dar certo. Você tem que entender. Não é só você que tem essas certas necessidades. Ela? Por que não? Quero tudo ao mesmo tempo. Só pra mim. Você é egoísta. Extremamente. Não nego. Estou fazendo um esforço grande para controlar. Para controlar minha vontade de saciar todos os desejos ao mesmo tempo. Não quero fumar maconha, mas vou. Sem você. Porque você me atrapalha. Deixa que pelo menos eu acenda teu cigarro. Você é a minha tentação de não pensar em nada, de pensar em mim sem pensar em nada. Você é apenas aquela desculpa certa para meu descomprometimento com todo o resto. É nisto que reside este vício. É nisto que reside o teu amor? Não sei. Talvez. É uma possibilidade. Eu ando pensando bastante nela. Uma busca por um conforto imóvel. Gostar da minha companhia não deveria ser o suficiente pra gente ficar junto. Não acredito no seu amor tampouco. Você pretende demais. Pretende suprimir-me de todas as minhas necessidades. Pretende dar conta e ainda me tornar eternamente apaixonada por ti. Pretende ser único e exato. O melhor. Você não me ama, você está competindo. Com quem? Não me importa. Acho que não te importaria tampouco. Você notou aqueles sujeitos estranhos entrando na festa? Observaram tudo, todo mundo, e foram embora. Não mude de assunto. Não mudei. Você não quer nada? Um trago? Meu estômago? Você é do tipo que depois de um pouco pede o meu estômago. O pior é que, se duvidar, eu dou mesmo. Você se faz de mártir o tempo todo. É um mártir dos sentimentalismos baratos. Estou convencido de que você não me ama. Eu também. Boa noite. Boa noite.

Bárbara Nunes (2005)

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Impressões

hi my name is sam,
i draw pictures, from your titles.
send me a title,
or any thing else you want
to talk to me about to:
sambrown@explodingdog.com


i lost the stuff



Good Bye




it's been so long since i last saw you



can't let go


From: http://www.explodingdog.com/

quinta-feira, janeiro 26, 2006

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho genios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Quero

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.


Carlos Drummond Andrade